Edmund Lee Gettier III é professor emérito da Universidade Massachusetts. O modo como esse filósofo ficou conhecido no mundo acadêmico é realmente incrível. Enquanto lecionava na Universidade Estadual Wayne, em Michigan (EUA), precisou, por motivos institucionais, escrever um artigo acadêmico para garantir sua posição como professor permanente na instituição. O que se sabe é que este filósofo não tinha ainda um tema específico em mente ou alguma pesquisa que pudesse ser publicada.
Ao finalizar o artigo, o texto não passava de 1000 palavras, mas foi publicado no renomado periódico Analysis, em Junho de 1963. Teve como título Is Justified True Belief Knowledge? (Crença verdadeira e justificada é Conhecimento?), uma alusão à noção de conhecimento aceita na época, que tinha origem em Platão, e que hoje se convencionou nomear teoria tradicional do conhecimento. De acordo com a interpretação corrente, atribui-se conhecimento sobre uma proposição p a um sujeito S se, e somente se:
- A proposição p é verdadeira.
- S acredita em p.
- S está justificado a acredita em p.
Descrevendo apenas dois casos nos quais uma pessoa poderia preencher essas condições, mas sem a atribuição de conhecimento, esse filósofo conseguiu provocar uma tempestade no cenário filosófico da época. Os dois exemplos apresentados tratavam de uma crença verdadeira que é inferida de uma proposição que não corresponde aos fatos. Seria apenas, então, uma questão de sorte que essa crença inferida após o raciocínio seja verdadeira.
“S, vamos supor, está justificado em acreditar que Jones possui um Ford (ele tem mantido, por muito tempo, um Ford na garagem e assim por diante). Isso implica que (h) ‘ou Jones possui um Ford ou Brown está em Barcelona’. S acredita em h, embora ele não tenha nenhuma justificação para acreditar que Brown está em Barcelona, e de fato não acredite nisso. Mas, suponha que Jones não possua um Ford, mas que Brown esteja em Barcelona. Nesse caso, a crença justificada de S que h é verdadeira - mas não se pode dizer que ele conhece h nessas circunstâncias. E é por isso que é uma questão de fato que seu procedimento inferencial produz em uma crença verdadeira.” (SWINBURNE, 2001, p. 193, grifo do autor, tradução nossa)
“S, let us suppose, is justified in believing that Jones owns a Ford (q) (he has at all times kept a Ford in his garage, and so on). This entails (h) 'either Jones owns a Ford or Brown is in Barcelona'. S believes h, although he has no justification for believing that Brown is in Barcelona, and does not in fact believe that. But, suppose that Jones does not own a Ford, but Brown is in Barcelona. In that case S's justified belief that h is true—but he cannot be said to know h under these circumstances. And this is because it is a matter of luck that his inferential procedures yield a true belief.”
As tentativas de resolver a dificuldade proposta por Edmund Gettier nos levam a pelo menos três alternativas: a) podemos simplesmente rejeitar a proposta e tentar encontrar um erro na argumentação desse filósofo; b) podemos elaborar uma quarta condição, para impedir que o sujeito caia no problema apontado pelos contraexemplos; ou c) podemos tentar modificar as premissas para evitar o problema. Seja qual for a tentativa de solução, percebe-se que a crítica atinge de modo especial as perspectivas internalistas quanto ao conhecimento, o que motivou o desenvolvimento de muitas teorias externalistas -- seja quanto ao conhecimento, seja quanto a justificação.
O curioso é que esse artigo foi a única publicação de toda carreira profissional de Edmund Gettier. Não se encontra sequer uma biografia desse filósofo nos websites destinados a esse fim. Em 2013, a Universidade de Edinburgh hospedou uma conferência sobre os 50 anos do problema de Gettier, na qual a maioria dos principais epistemologistas participou, menos o próprio Gettier.
Os contraexemplos de Gettier foram tão relevantes que hoje se fala em Epistemologia pós-Gettier. Sabe-se hoje, entretanto, que dificuldades semelhantes às propostas por Edmund Gettier à definição de conhecimento foram pensadas anteriormente por outros filósofos. No próprio contexto da cultura filosófica ocidental, Bertrand Russell e Alexius Meinong haviam proposto argumentos que apresentavam críticas à concepção tradicional. Muito interessante, por outro lado, é a argumentação que o filósofo e poeta indiano Śrīharṣa propôs, em meados do séc. XII, como uma crítica à tentativa de definição do que seja conhecimento em sua época. Sua proposta mencionava condições quanto à ausência de sorte (anti-luck), próximas a que externalistas propuseram séculos mais tarde.
Referências:
CHISHOLM, Roderick M. Theory of Knowledge, 3rd ed. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1989.
DAS, Nilanjan. Śrīharṣa. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2018. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/entries/sriharsa/>. Acesso em 22.02.2018.
ENGEL, Mylan. Epistemic Luck. In: Internet Encyclopedia of Philosophy, 2010. Disponível em: <https://www.iep.utm.edu/epi-luck/>. Acesso em: 30.03.2018.
GETTIER, Edmund L.. Is Justified True Belief Knowledge? Analysis, v. 23, n. 6, jun. 1963, p. 121-123.
SWINBURNE, Richard. Epistemic Justification. Oxford: Clarendon Press, 2001.
TURRI, John. Is knowledge justified true belief? Synthese, v. 184, n. 3, feb. 2012, p. 247-259. Disponível em: <https://link.springer.com/article/10.1007/s11229-010-9773-8>. Acesso em: 30.03.2018.
Texto originalmente publicado em https://www.infoescola.com/biografias/edmund-gettier/