Esta semana decidi contrariar uma antiga decisão minha de não assistir Cisne Negro, pois a maior parte dos comentários classificava o filme, no mínimo, como um terror psicológico, algo que eu preferia evitar neste momento. Mas uma forte intuição bateu e me levou ao cinema justamente para descobrir a história por mim mesma.
Foi com certeza uma das experiências mais malucas, assustadoras e fascinantes da minha vida. É ainda mais difícil narrar minhas impressões sobre o filme que permanecer na cadeira do cinema do início ao fim. Vou começar com as primeiras palavras que me vieram à mente no momento em que saí da sala: perturbador, desesperador, visceral e sublime.
A trama acompanha a montagem de um balé clássico, O Lago dos Cisnes, de Piotr Ilitch Tchaikovsky, por uma companhia que decide aposentar sua primeira bailarina, Beth, brilhantemente interpretada por Winona Ryder. A partir deste momento iniciam-se os testes para sua substituição. Esta é a oportunidade que Nina, a protagonista da história, uma atuação magistral de Natalie Portman, sempre desejou, e ela dá tudo de si para conquistar a vaga.
No momento em que ela é escolhida para interpretar a Rainha Cisne, a realização de seus sonhos, as pressões exercidas pelo coreógrafo Thomas e por sua mãe possessiva, uma ex-bailarina frustrada, vivida pela atriz Barbara Hershey, levam Nina ao limite de sua psique já perturbada, até atingir o ponto crucial onde todas as fronteiras entre realidade e imaginação, loucura e sanidade, são transpostas.
Talvez um dos elementos mais perturbadores deste filme seja seu ponto de vista, que transporta o público para o interior da mente atormentada e doentia de Nina; esta é a única versão da história, não há outras visões da mesma narrativa. Este ‘detalhe’ tem um impacto profundo sobre a plateia, ou pelo menos teve em mim, pois a partir de um determinado momento não conseguimos mais distinguir o que é real do que é mera alucinação.
Nina é a bailarina que busca a perfeição da técnica; ela é o Cisne Branco ideal, pois representa a inocência, a pureza e a doçura que a personalizam. Por outro lado, ela é radicalmente controlada, disciplinada e reprimida; mas Thomas a escolhe porque sabe que em algum ponto de sua alma está presente o Cisne Negro, símbolo da sexualidade, da sedução e do mal.
Enquanto no Lago dos Cisnes duas irmãs gêmeas disputam o príncipe que traz consigo a libertação de um feitiço que as mantêm cativas nos corpos de dois cisnes, o branco, que traduz a luz de uma, e o negro, que simboliza as sombras que habitam a alma da outra, as mesmas forças se confrontam no interior de Nina, que luta desesperadamente para permitir que sua face sombria se manifeste. A única forma que ela encontra de extravasar seus sentimentos é através da automutilação; quando seu corpo sangra, as emoções jorram de sua alma como se finalmente uma porta fosse aberta.
Ao mesmo tempo, ela entra em conflito com sua mãe, o que intensifica ainda mais seu desgaste psíquico, e passa a projetar seus medos mais primitivos em outra bailarina, Lily, interpretada por Mila Kunis, que se destaca como coadjuvante. Ela não tem uma técnica apurada, mas apresenta a naturalidade e a sensualidade que Nina mais deseja expressar. Quando as duas se aproximam, a mente da protagonista imediatamente a identifica como sua principal rival, na verdade uma personalização de sua sombra.
O que se vê na tela é a essência da arte, um jogo de sedução e fascinação, e cenas que beiram o mais profundo terror psicológico. Esta inusitada combinação provoca um impacto único e inesquecível no público, pois toca as profundezas do inconsciente humano, seus abismos mais sombrios, e prova que a alma humana é tecida por luzes e sombras. A trajetória de Nina atesta que é impossível qualquer possibilidade de crescimento emocional sadio quando esta esfera mental é simplesmente desprezada e reprimida.
O desfecho do filme é ainda mais impactante; ele nos prende, nos paralisa e rouba o nosso fôlego de tal forma que mal podemos respirar, literalmente. A encenação do balé, principalmente a atuação do Cisne Negro, é tão sublime, que nenhuma palavra, por maior que seja sua magia, poderá descrever. É uma daquelas cenas que ficam gravadas para sempre na mente humana. Natalie Portman merece, com certeza, não só o Oscar de melhor atriz, mas todos os prêmios de melhor interpretação de 2010. Por mais difícil e angustiante que seja a experiência de assistir Cisne Negro, é impossível sentir qualquer vestígio de arrependimento quando o filme chega ao fim.
Observação: Anotem o nome do diretor, que, aliás, qualquer cinéfilo irá reconhecer: Darren Aronofsky. É ele o responsável por filmes como O Lutador, de 2008, muito celebrado pela crítica e pelo público; o menos festejado A Fonte da Vida, lançado em 2006; e os trabalhos antigos que lembram mais Cisne Negro: Pi (1998) e Requiem Para Um Sonho (2000).