O trabalho do cineasta Fernando Meirelles em O Jardineiro Fiel, baseado no romance homônimo do inglês John Le Carré, revela um talento e uma contundência impressionantes. Com a mesma maestria que surpreendeu o universo cinematográfico em seu filme Cidade de Deus, ele retrata o cenário de horror mascarado de diplomacia inglesa, no qual pretensos “deuses” brincam com vidas humanas no continente africano.
Esses artífices puxam seus fios e manipulam suas cobaias – seres anônimos mergulhados na mais profunda miséria, no mais absoluto desamparo -, convertendo suas tragédias pessoais em estatísticas ocultas, uma vez que dos dados oficiais não constam suas passagens pelo sistema de saúde, muito menos suas mortes – talvez nem mesmo suas vidas, que nada significam para os altos escalões do poder.
O filme começa com o assassinato de uma ativista política (Weisz) no Quênia. Seu marido, o diplomata inglês Justin Quayle, interpretado por Ralph Fiennes, inconformado com essa perda brutal, parte em busca da verdade, com a mesma obstinação que lhe move quando, nas horas vagas, se dedica ao seu jardim. Esse drama social, ao expor as delicadas relações de poder entre a indústria farmacêutica e os bastidores do governo inglês, revela as entranhas desta união perversa – que se concretiza com o intuito de gerar lucros e fortunas incalculáveis, além do tão almejado poder sócio-econômico, sem medo de tocar nas feridas, ainda abertas, da neocolonização britânica na África.
A narrativa fragmentada, ao se mover entre o passado e o presente, através de recorrentes ‘flashbacks’, impregna o filme da presença de Tessa Qualyle, interpretada por Rachel Weisz, apesar de sua morte ocorrer logo no início da trama, que é pontuada pela excelente fotografia de César Charlone, parceiro de Meirelles em Cidade de Deus. O diretor se vale de câmeras portáteis que captam o povo africano com total naturalidade, sem que eles percebam, naquele momento, que estão sendo filmados. Este recurso confere às cenas uma espontaneidade singular. A trilha sonora, assinada por Alberto Iglesias, expõe ainda com maior dramaticidade a alma africana manchada de sangue.
Fernando Meirelles extrai do elenco uma interpretação rica e vibrante. Eleito melhor filme inglês de 2005 pela Associação dos Críticos de Cinema de Londres – que também deu os prêmios de melhor atriz à Rachel Weisz (por sinal, ela recebeu igualmente, por este mesmo papel, os prêmios de melhor atriz coadjuvante no Globo de Ouro e no Oscar 2006), melhor ator a Ralph Fiennes, e melhor produtor inglês a Simon Channing Williams. O Jardineiro Fiel também concorreu em mais três categorias no Oscar 2006 – roteiro adaptado (Jeffrey Caine), montagem (Claire Simpson) e Trilha Sonora Original (Alberto Iglesias).
Além de mergulhar nos meandros do poder e da ambição, pode-se dizer também que o filme tece, ante o olhar do espectador, uma das mais belas histórias de amor do cinema. Sem falar em seu final surpreendente. Fernando Meirelles, em sua primeira produção internacional, realiza um trabalho que o habilita, sem dúvida, a figurar ao lado dos maiores cineastas contemporâneos.
Fontes
O Jardineiro Fiel – Fernando Meirelles – Elenco: Ralph Fiennes, Daniele Harford, Rachel Weisz – EUA/ING – 2005 - 129 min.
Texto originalmente publicado em https://www.infoescola.com/cinema/o-jardineiro-fiel/