Nunca as reflexões sobre as práticas pedagógicas foram tão intensivas. Em virtude de um agente externo, uma pandemia que obrigou a suspensão das aulas em diferentes partes do mundo, os educadores foram levados a repensar sua profissão, sua contribuição para a sociedade, suas ações, seu método de avaliação e muitos outros aspectos que englobam a carreira.
No início do ano letivo, as aulas foram suspensas temporariamente objetivando o isolamento social conforme já estava ocorrendo em outros países. Entretanto, o que se estimava ser um breve recesso, arrastou-se por meses, comprometendo definitivamente o andamento do ano letivo e inviabilizando a implementação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), cujo cronograma previa a execução em todas as escolas do país ainda em 2020.
Mas por que o título deste artigo se refere a “marco na educação” e não a “impacto na educação”?
Pois bem. Conforme as semanas se arrastaram, as diferenças entre as instituições de ensino que já possuíam um suporte para atender à educação à distância (EAD) e as que não estavam preparadas se acentuaram consideravelmente. O que até então figurava como “contraste social” ou coisa parecida, mostrou-se como um verdadeiro abismo entre mundos educacionais completamente diferentes.
Ao invés de uma base comum nacional, a atipicidade desse ano provocou, na educação brasileira, uma multiplicidade de realidades que foram desde as escolas que já tinham prática à distância, cujos estudantes já estavam acostumados a usar suas plataformas e tinham recursos de sobra para acessá-las, até aquelas cujos professores não tinham sequer equipamento de informática para elaborarem materiais para ser impressos e entregues aos estudantes que não tinham sequer comida em suas casas, muito menos acesso à tecnologia da informação. Isso sem falar nas escolas que contavam, simultaneamente, com diferentes realidades.
Muitos recortes poderiam ser feitos em se tratando de “marco na educação”, como a questão da destinação da merenda escolar às famílias dos estudantes de baixa renda, as inúmeras dificuldades enfrentadas pelas escolas de educação infantil, as dificuldades, por parte dos orientadores educacionais e dos Conselhos Tutelares, do acompanhamento de estudantes em situação de vulnerabilidade, o atendimento aos estudantes de inclusão e os desafios da etapa de alfabetização. Peço aqui uma salva de palmas aos professores que porventura conseguiram alfabetizar à distância, filhos de pais analfabetos e que não têm acesso a equipamentos de informática.
O recorte que trago aqui se refere à interdisciplinaridade. Cabe aqui diferenciar a interdisciplinaridade da multidisciplinaridade.
Enquanto a multidisciplinaridade se refere à abordagem de diferentes disciplinas sobre um mesmo tema, mas sem articulação entre si, na interdisciplinaridade as diferentes disciplinas planejam juntas visando um objetivo comum. No caso, a multidisciplinaridade está relacionada a propósitos diferentes, enquanto a interdisciplinaridade parte do mesmo propósito para ser trabalhado nas diferentes disciplinas1.
Trago aqui a minha experiência de ação interdisciplinar neste período em uma escola pública na região metropolitana de Porto Alegre e que atende estudantes de diferentes realidades sociais.
Sou licenciada em História e, em 2020, coube a mim atender às turmas dos anos finais do Ensino Fundamental no período da manhã em História, além de Geografia para o 7º ano e Ensino Religioso no 9º ano.
Depois de quase 60 dias de isolamento social e sem perspectivas de retorno das aulas, organizamos o envio de atividades de revisão para que os estudantes executassem em casa. Na semana seguinte, por ordem da mantenedora, deveríamos planejar atividades para entregas quinzenais aos estudantes, as quais seriam contabilizadas oficialmente como aulas. Nesta ocasião, os docentes foram divididos por área de conhecimento para planejarem juntos. Conversei com meus colegas que também atuam em História e Geografia e optamos por fazermos juntos um material único para os dois turnos, contemplando os dois componentes curriculares. Como eu sou formada em História e leciono também Geografia e o colega da tarde é formado em Geografia e leciona História e optamos apenas por seguir um modelo simples de revisão de conteúdos, foi relativamente fácil preparar os materiais das semanas 1 a 4.
Como o professor de Inglês, que leciona Ensino Religioso (ER) do turno da tarde, estava nos auxiliando no suporte de informática para nossas reuniões, já preparamos ele e eu as atividades do 9º ano em ER para os dois turnos também. Inclusive estendemos nosso diálogo para planejarmos as semanas 5 a 8 entre História, Geografia, ER e Inglês.
No segundo mês a coisa complicou. Devido a acontecimentos em nossa cidade envolvendo a agressão a um jovem angolano2, no contexto dos protestos internacionais de Black Lives Matter3, decidimos que nossos materiais seriam planejados com a temática racial, além de aspectos míticos, linguísticos e culturais de diferentes continentes. Porém não houve consenso e, enquanto preparávamos o material para as semanas 5 e 6, houve saída e entrada de integrantes no nosso grupo de trabalho às vésperas do prazo para reprodução das atividades, contemplando a partir de então História, Geografia, Inglês, Ensino Religioso e Artes. Sendo que as turmas de 9º ano têm estudantes de inclusão com necessidades bem distintas.
Para dificultar ainda mais, na mesma semana, foi decretada “bandeira vermelha”4 em nossa cidade em virtude do alastramento dos casos de contaminação viral, modificando as entregas, que eram quinzenais, para mensais. Tudo tendo que ser reformulado (em virtude da alteração dos profissionais) e readaptado com máxima brevidade, na ocasião que também tivemos que corrigir as atividades devolvidas pelos estudantes para que fosse possível contabilizar as presenças (horas/aula).
Ficou complicado de entender os três últimos parágrafos? Ficou, né? Então imagine tudo isso aliado ao fato de que eu relaxei na revisão da formatação final. Sim, confesso que fui relapsa nisso. Como dizem aqui nos pampas: contei com o ovo no...
E foi assim que o material saiu em arquivos separados e ficou tão confuso que eu levei um dia inteiro junto à direção da escola para conseguir organizar. Eu estava me sentindo triste e frustrada. A interdisciplinaridade é algo no qual eu realmente acredito e defendo como benéfico aos estudantes.
Conversei com meus colegas deste grupo de trabalho e creio que o sentimento deles era parecido. Realmente, o resultado não saiu como almejávamos, mas acreditamos na proposta e decidimos investir nela. Já na mesma semana começamos a avaliar os erros e acertos de nossa experiência e listar as ações necessárias visando a melhoria e a excelência.
Essa experiência aparentemente negativa trouxe um enriquecimento de saberes e um desenvolvimento profissional e de equipe sensacional. Conforme disse outra colega de nossa escola: os desafios de 2020 proporcionaram a nós, educadores, uma chance de crescimento sem precedentes.
Dá-me um limão. Cabe a mim decidir se reclamo do amargor ou se faço uma deliciosa e refrescante limonada.
Referências:
1 Conforme artigo de Daisy Libório disponível em https://canaldoensino.com.br/blog/multidisciplinaridade-interdisciplinaridade-e-transdisciplinaridade-diferencas-e-convergencias
2 Notícia divulgada em https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2020/06/morre-exu-desgracado-angolano-que-perdeu-amiga-foi-baleado-e-preso-relembra-acao-policial/
3Movimento Vidas Negras Importam pode ser consultado no artigo https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/06/03/black-lives-matter-conheca-o-movimento-fundado-por-tres-mulheres.htm ou através do site oficial https://blacklivesmatter.com/
4 Maiores informações podem ser obtidas através das páginas https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/cinco-regi%C3%B5es-entram-na-bandeira-vermelha-do-distanciamento-controlado-1.438987 e também https://www.girodegravatai.com.br/wp-content/uploads/2020/06/decreto-oficial.pdf