Selecionamos as questões mais relevantes da prova de vestibular URCA 2015/2. Confira! * Obs.: a ordem e número das questões aqui não são iguais às da prova original.
EUFRÁSIA MENESES
Sentada estou. É aqui que me vêem todas as tardes e me imaginam a esperar a noite. O que mais esperaria além da passagem da claridade? A hora em que me trancarei no meu quarto à espreita de um visitante que rondará a casa e que nem sei se é real ou se urdido pela minha fatigada solidão? Meu marido é incerto no vir, e todos o sabem. Pressentem que anoiteço e, se passam à minha porta, me perguntam: “Esperando a noitinha, dona Eufrásia?”. Mas o que me trará a noite além de um vento frio e de um silêncio fundo? O cheiro de carne apodrecida do gado morto neste ano de seca, um bater de portas que se fecham, o balido de ovelhas se aconchegando, o fungar das vacas prenhes, o estalar das brasas que se apagam no fogão.
Meu filho dorme ao lado, numa rede alva e cheirosa. Ouço o seu respirar leve e tenho a certeza de que está vivo. Habitamos este universo de ausências: ele dormindo, eu acordada. Atrás de nós, uma casa nos ata ao mundo. É imensa, caiada de branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e fechá-las. Fechada, a casa lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos nas paredes, selas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã vestiu. Ela julga e condena os nossos atos, pela antiga moral de seus senhores, de quem meu marido é herdeiro. Assim, se penso no casual nome de outro, o estrangeiro que me olhou com mansidão, ela me escuta pensar e depois, nos meus sonhos, grita-me com todas as suas vozes. Sou escrava destas paredes, prisioneira de pessoas mortas há anos que, agora, se nutrem de mim. Abarcada pelo calçadão alto, onde me sento e olho a eterna paisagem: o curral, as lajes do riacho, a curta estrada, a capoeira, os roçados, as casas dos moradores. Envolvendo tudo, um silêncio e um céu azul sem nuvens, que o vento nem toca. E longe, onde não enxergo, a terra de onde vim.
Já é quase noite. Meu marido e seus vaqueiros tangeram o gado até o curral e voltaram a campear reses desgarradas. Trouxeram as ovelhas, com seus chocalhinhos tinindo e uma nuvem mansa de lã e poeira. Os animais estão magros e famintos. Também os homens. O sol queima e requeima as doze horas do dia e, à noite, um vento morno e cortante bebe a última gota d’água do nosso corpo. Já somos garranchos secos, quebradiços, inflamáveis. Basta que nos olhem para ardermos numa chama brilhante e fugaz, que logo é cinza.
Minhas veias guardam um resto de vida, alimento do meu marido. Ele deita sobre mim, funga, rosna, machuca-me sem me olhar no rosto. Depois cai para o lado. Contemplo o telhado e toco, com as pontas dos dedos, o sêmen morno que molha o lençol. Não sei como escapar. São tantos os anos e há este filho doce, que repousa na rede. De tardezinha, nos debruçamos na janela e vemos o gado que chega. As vacas mugem, os touros andam lentos. O sol se avermelha, morrendo. É tudo tão triste que choramos, eu e ele. Ensino-lhe o pranto e a saudade. O pai ensina-lhe a dureza e a coragem. Quero este filho só para mim. Fazê-lo ao meu modo é a maior vingança contra meu marido, que me trouxe para cá, terras de Sulidão, onde o galo só canta uma vez a cada madrugada.
É verdade que vim com as minhas pernas, que não fui forçada. Deixei o verde Paraí da minha mãe, onde meu pai descansa morto. Se fecho os olhos agora, vejo os canaviais ondulando e sinto o cheiro da rapadura. Nem sei como os meus pés despregaram de lá. Não consigo recompor o passo, na ligeireza que foi tudo. Um tio me levou para ser professora no Cameçá, a dez léguas de onde nasci. Ficaria por uns tempos na casa dos Meneses, que antes habitavam o Sulidão. Chegados há pouco na nova propriedade, o contato de pessoas civilizadas tinha-lhes imposto a necessidade de conhecer as letras. Meus alunos seriam os filhos: cinco mulheres e nove homens. Os velhos não se dariam a tais vexames.
Uma revoada de aves de arribação me acorda das lembranças. A África acolherá esses pássaros que abandonam o sertão. Se ficam aqui, morrem de fome e de sede. Voam num comprido manto, estendido no céu. Nós ficaremos, chupando a última gota d’água das pedras, lendo no sol, todos os dias, nossa sentença.
Um vaqueiro passa. Um galho de aroeira rasgou-lhe o couro do gibão e do braço. Vão à procura de mastruço para acalmar a ferida. A fome enerva o gado e os homens não conseguiram juntar os garrotes e os touros. Ouço-o dizer que o meu marido está nervoso e ameaçou de morte um chamado João Menandro, o de outras paragens. Desentendera-se. Meu marido, afeito ao mando, quer passar por cima de quem lhe esbarra na frente. Ou terá pressentido o que nenhum gesto meu jamais revelou? Tremo e mostro ao homem um canto do quintal onde poderá achar a sua meizinha. Ele me agradece, parece querer dizer outra coisa, porém cala e me olha com pena. Todos me olham assim. Se passam na minha porta, tiram o chapéu, desejam-me boa-hora e seguem em frente. Apesar dos anos passados, vêem-me como estrangeira. É difícil o caminho que leva aos seus corações. Gostarão de mim, tão silenciosa e distante? Suspeitarão dos meus ocultos sentimentos? Procuro a resposta no vaqueiro e, quando vai embora, se despede num brusco balançar de cabeça.
No começo tentei amar esta terra e sua gente. Trazia a minha fresca alegria, banhada de novo nas fontes do Paraí. Mas aqui o sol queima forte e somos bebidos até a última gota. Seca, deixei de bater às portas e me recolhi ao labirinto da casa, onde continuo esperando. Os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite. Na casa dos Meneses, fiquei o tempo de me apaixonar por Davi, meu futuro marido, e de ensinar aos alunos as primeiras letras. Fui tratada a açúcar, enquanto os outros comiam rapadura. Tempo de corredores escuros. Conheci a força dos abraços do meu marido, o ímpeto do seu desejo, e cedi. E aqueci minha alma de mulher e nem perguntei pelo amor. Só ardia. Deixei-lhe a mão solta, o membro sem freios. Cavalgada, retornei à casa da minha mãe e esperei o dia do casamento. Dançamos os três dias de festa, viemos para este seco Sulidão. Esta casa fora abandonada por seus antigos donos, mas aguardava o peso cruel das suas presenças. Coube-nos perpetuar neste sertão uma herança de estirpe, sólida como as pedras do calçadão alto.
Meu filho, mexendo-se na rede, traz-me de volta à casa. Está tudo escuro e terei de acender os candeeiros. Numa noite como esta, passou correndo um lobo-guará. Meu marido deu tiros, mas não o acertou. Falou-se sobre o lobo por muitos dias. São os acontecimentos desta terra. Vivo de silêncio e de lembranças. Às vezes, quando não quero sonhar, penso em nomes de pássaros, retardando a hora em que terei de me trancar a ferrolhos. Procuro esquecer um tropel que ronda a minha janela, todas as noites em que me deito só. É a hora de decidir? Ouço um respirar que não é o meu. A noite é um lençol que cobre a fadiga dos homens. Dominada pelo cansaço, adio mais uma vez a minha escolha. A realidade de uma lâmina de faca, guardada sob o travesseiro, lembra-me o instante em que poderei cortar o sono e cavar a vida.
Um vaqueiro vem me avisar que meu marido não retornará esta noite. Celebram uma festa perto daqui. Vieram músicos e mulheres de longe. Na madrugada, ainda se ouvirão os gritos de prazer e as notas perdidas de uma música que não conseguirei identificar. O homem me oferece a companhia de uma filha sua e eu agradeço. Diz-me que a briga entre meu marido e o que veio de longe deixou no ar uma sentença de morte. A noite poderá trazer surpresas e eu devo me recolher cedo. Estou só. Não há pai, nem há mãe, nem sorriso de irmãos. Só a casa espreita, querendo me tragar.
João Menandro é um nome que se confunde com o meu sonho. Haverá mesmo, lá fora na noite, alguém que me aguarda, ou o meu desejo inventou esse ser? A noite interminável me cansa e penso em apressar o desfecho de tudo. Não há tempo para contemplar passiva o mundo morrendo em volta. A mão se endurece ao toque da lâmina que o travesseiro esconde. Meu marido retornará sonolento. O outro virá até minha janela. Eu me olharei num espelho. Chegará sim, a madrugada. Aquela que poderá ser a última, ou a primeira.
(Texto extraído do Livro Faca, de Ronaldo Correia de Brito)
Sobre o texto podemos afirmar:
Por incorporar um eu feminino que conta a estória, o texto perde a sua verossimilhança, uma vez que é humanamente impossível ao homem compreender toda a complexidade deste universo.
O texto é uma narrativa descritiva em que o eu se restringe a relatar fatos de sua vida e transforma todo o percurso de narratividade em uma grande cena.
A descrição de cenas, o percorrer agônico para o fim, os mitos e mistérios apresentados no texto remetem, unicamente, para o espaço do sertão nordestino.
O texto retoma um dos arquétipos mais antigos da tragédia: de que o mal surge no seio da própria família, que, ao fim, é encaminhado para a extinção.
O texto funciona como uma espécie de pretexto para voltar a perscrutar aqueles segredos que são próprios do ser humano e independem de época ou de lugar.
No que se refere aos aspectos estruturais do texto, dizemos que:
Segue a uma cronologia temporal.
Apresenta um narrador observador onisciente.
De natureza psicológica, subverte o tempo/espaço para aflorar o ambiente.
O espaço físico é preponderante em toda a narrativa.
Predomina a ação em detrimento da narratividade.
Uma leitura do texto permite-nos afirmar:
A personagem que conta a estória encontra-se tão ressequida de emoções e sentimentos que não há, em toda a sua composição, elementos que caracterizem emoção ou algum sentimento.
Desterrada da sua terra e de toda a carga afetiva que este fato acarreta, a narradora desfia um emaranhado de lamentações e tristezas que se misturam ao torrão abrasado pela seca.
Podemos dizer que os gestos da personagem dependem da gravidade irregular da passagem das horas e o ritmo da vida externa se contrapõe à lentidão da vida, ao cadenciado que cheira à morte.
Podemos afirmar que há ao longo do texto um místico de esperança e de alento que se contrapõe à desgraça declarada nas mortes pressentidas e anunciadas.
Embora demonstrando o cansaço da vida e a dureza dos caminhos percorridos, há um grande sentimento que envolve Davi e a personagem que narra a estória.
Dado o fragmento: “. Seca, deixei de bater às portas e me recolhi ao labirinto da casa, onde continuo esperando.” A palavra que melhor resume esta passagem, é:
Tristeza.
Angústia.
Desamor.
Solidão.
Revolta.
“Atrás de nós, uma casa nos ata ao mundo. É imensa, caiada de branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e fechá-las. Fechada, a casa lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos nas paredes, selas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã vestiu.”
Dado o excerto acima, podemos dizer que os elementos citados sugerem:
Apenas o dessabor da voz narrativa.
Uma aristocracia decadente que ainda se impõe nos objetos descritos, na imensidão do ser.
O distanciamento entre as famílias ricas e os seus agregados.
Toda uma representação mítica de uma cultura estabelecida.
A fuga de uma realidade urbana para a realidade rural.
“Os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite.” A figura existente na expressão em destaque é:
Metáfora.
Metonímia.
Hipérbole.
Eufemismo.
Ironia.
“Meu marido, afeito ao mando, quer passar por cima de quem lhe esbarra na frente. Ou terá pressentido o que nenhum gesto meu jamais revelou?” O termo em destaque é classificado:
Oração subordinada substantiva objetiva direta.
Oração subordinada substantiva completiva nominal.
Oração subordinada adjetiva restritiva.
Oração subordinada substantiva subjetiva.
Oração subordinada substantiva apositiva.
“Diz-me que a briga entre meu marido e o que veio de longe deixou no ar uma sentença de morte.” O termo em destaque, sintaticamente, é classificado como:
Sujeito.
Complemento nominal.
Objeto indireto.
Objeto direto.
Aposto.
“Esperando a noitinha, D. Eufrásia?” Quanto à análise dos elementos mórficos que compõem o termo em destaque, a alternativa INCORRETA é:
Radical - “noit”
Vogal temática - “e”
Tema - “noite”
Sufixo - “inh”
Desinência de gênero - “a”
Sobre a Segunda Fase do Modernismo Brasileiro, pode-se dizer:
I. Foi caracterizada, no campo da poesia, pelo amadurecimento e pela ampliação das conquistas dos primeiros modernistas. II. Hermética, a valorização da linguagem rebuscada e metalinguística apresenta um certo desafio ao leitor iniciante. III. Os poetas do período tinham liberdade para escolher formas como o soneto ou o madrigal, sem que isso significasse uma volta às estéticas do passado, como o Parnasianismo. IV. Ênfase no conteúdo sonoro e visual, disposição assimétrica dos versos no papel, possibilidade de diversas leituras através de diferentes ângulos. V. No aspecto temático, a abordagem do cotidiano continuou sendo explorada, mas os poetas voltaram-se também para problemas sociais e históricos, além de manifestarem inquietações existenciais e religiosas que ampliaram as proposições da fase anterior.
Apenas II e IV são corretas.
I, III e V são corretas.
III, V e IV são corretas.
II, III e V são corretas.
Apenas IV está correta.