“No dia seguinte mandaram os cercados um boletim com bandeira branca, pedindo bom quartel e prometendo entregar as armas. Concedeu-lhes Bento do Amaral o que pediam, mas faltando, como pérfido e cruel, tanto que os viu sem armas, deu ordem em altas vozes para que os matassem; e sem mais conselho, acompanhado dos escravos e ânimos mais vis daquele exército, ainda que com pena e repreensão das pessoas de maior suposição e qualidade que nele se achavam, fez um tal estrago naqueles miseráveis, que deixando o campo coberto de mortos e feridos, foi causa de que ainda hoje se conserve a memória de tanta tirania, impondo àquele lugar o infame título de Capão da Traição.” (Padre Manuel da Fonseca)
O evento denominado Capão da Traição pode ser entendido a partir de dois processos de uma pesquisa ainda em curso no meio universitário. O primeiro deles se refere ao acontecimento de caráter conflituoso ocorrido no contexto da Guerra dos Emboabas nos anos iniciais da economia aurífera. O segundo se refere ao local exato onde dezenas de soldados paulistas teriam sido mortos após entregarem suas armas com a promessa de que teriam suas vidas poupadas. Para entender tal acontecimento, é preciso dar conta de, pelo menos, duas questões: as descobertas de minas de ouro na região paulista em fins do século XVII e os conflitos pela posse daquele território.
No início do século XVIII, a expansão paulista através de entradas e bandeiras em direção às chamadas “Minas Gerais”, iniciadas ainda no século XVII, estava praticamente completa. A descoberta de ouro pelos paulistas foi acompanhada por uma enorme propagação da notícia que concorreu para uma franca incursão de pessoas vindas de diferentes partes da colônia e mesmo da Europa. O Ato Real de 1694 que garantia aos paulistas a posse das minas descobertas e o quinto dos recursos ali extraídos para a Coroa não foi suficiente, assim como as defesas dos próprios paulistas, para impedir os números cada vez mais crescentes de pessoas que afluíam para aquela região. Em pouco tempo, aqueles considerados como forasteiros pelos paulistas (sendo denominados pejorativamente de emboabas) passaram, em maior número, a disputar a posse das minas descobertas, ocasionando grandes conflitos de interesses com paulistas.
Inicialmente caracterizando pequenos incidentes locais, os quais dificilmente em outras condições históricas tomariam grandes proporções, tais desavenças passaram a se constituir em grande conflito armado pela posse da região das minas. Tal projeção ficou conhecida como Guerra dos Emboabas. Este evento pode ser caracterizado como uma série de confrontos travados pelo direito de exploração das minas descobertas pelos paulistas na região do atual Estado de Minas Gerais. Na época, as principais regiões de atividade mineradora foram Rio das Mortes, tendo por centro São João del-Rei; região de Ouro Preto e Mariana, e a região do Rio das Velhas, assinalada por Sabará e Caeté. Nos conflitos que se seguiram, os paulistas sofreram várias derrotas, sendo obrigados a abandonar boa parte de suas minas.
Num desses eventos, um destacamento de emboabas, comandado por Bento do Amaral Coutinho, fora enviado para conter um destacamento de paulistas chefiados por Valentim Pedroso de Barros e Pedro Pais de Barros que havia se dirigido para Sabará e Cachoeira com a missão de expulsar os que ali residiam. Fracassada aquela missão, o destacamento paulista passou a ser perseguido até a região do Rio das Mortes. Aproximando-se os emboabas, os paulistas subiram em árvores e delas empreenderam um ataque surpresa que resultou em várias baixas. Os emboabas passaram a sitiá-los de modo que se rendessem pela sede e fome.
Após dois dias e duas noites, recebendo promessa de Amaral Coutinho de que teriam suas vidas poupadas caso entregassem suas armas, os paulistas se renderam. O que ocorreu em seguida foi uma verdadeira chacina sobre o destacamento paulista que ali se encontrava. Alguns autores consideram que o número de mortos chegou a 50, enquanto outros afirmam que os mortos chegaram a 300. Até hoje de incerta localização, o lugar onde ocorreu este evento entrou para a história como Capão da Traição.
Referências:
DONATO, Hernâni. Dicionário das batalhas brasileiras. Ibrasa, 1996. Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=xeyuqtq3ImUC&oi=fnd&pg=PA11&dq=Cap%C3%A3o+da+Trai%C3%A7%C3%A3o&ots=HeRTbiO4aQ&sig=4DjAjAHZBMwYhuA4MYKKu0IQ9-I&redir_esc=y#v=onepage&q=Cap%C3%A3o%20da%20Trai%C3%A7%C3%A3o&f=false; Acesso em: 02 dez. 2017.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira, tomo I: A época colonial: do descobrimento à expansão territorial. Bertrand Brasil, 2008.
O CAPÃO da Traição. Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Seleção de Anísio Mello. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962 . In GÓIS, Carlos. Histórias da Terra Mineira. Imprensa Oficial, Belo Horizonte, 1913, pp. 118-123. Disponível em: http://www.consciencia.org/o-capao-da-traicao-territorio-mineiro; Acesso em: 02 dez. 2017.
SACRAMENTO, José Antônio de Ávila. PELOS 300 ANOS DA GUERRA DOS EMBOABAS E DO “CAPÃO DA TRAIÇÃO”. 2009. Disponível em: http://patriamineira.com.br/imagens/img_noticias/094716190510_Capao_da_Traicao.pdf; Acesso em: 02 dez. 2017.