Acadêmica: Jéssica Agostinho Moreno Simplício
Orientador: Prof. Dr. Fábio da Silva Sousa
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Resumo
O objetivo do artigo1 é contribuir para os estudos e as leituras produzidas da Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, no Rio de Janeiro, com enfoque nas charges desse acontecimento. Objetiva-se analisar um olhar mais próximo ao da época da Revolta, com foco na leitura visual presente nas charges. Em uma época de transformações e modernização, em contrapartida com uma ação higienista que deixou a população inquieta, o principal meio de informações foram os jornais impressos, que em muitas vezes, publicou charges da população que sofreu nesse período.
Palavras Chaves: Brasil, Rio de Janeiro, Periódicos Impressos, Manifestação.
1. Introdução: O Rio de Janeiro da Revolta2
Na última década do século XIX e nas primeiras do XX, o Rio de Janeiro passou por um período de reurbanização, com melhorias espelhadas na realidade europeia, que obteve uma visão desagradável do Rio de Janeiro, capital da nova república brasileira. O presidente Francisco de Paula Rodrigo Alves (1902-1906) deu plenos poderes ao prefeito e engenheiro Francisco Franco Pereira Passos (1902-1906) e ao médico Dr. Oswaldo Cruz, para que ambos executassem um projeto sanitário e desenvolvimentista com destaque a seguinte visão expressiva: superar o atraso do Brasil diante dos “países civilizados” e salvar a nacionalidade pela “regeneração” do povo.
No período mencionado acima, o Rio de Janeiro foi conhecida como a “cidade da morte” ou “tumulo dos estrangeiros”, devido à grande quantidade de mortes de imigrantes e viajantes que se depararam com a precariedade dos serviços públicos e as péssimas condições de vida. A visão da capital era de grandes casarões e palacetes, e uma camada considerada perigosa da população, que ocupou os centros da cidade, foi considerada como os proliferadores das diversas epidemias desse período. Para a burguesia, esses lugares precários dos centros da cidade eram habitados somente por viciados, vadios, jogadores, criminosos, bêbados e prostitutas.
A precariedade iniciou-se com a aglomeração de pessoas dentro dos casarões que foram alugados para diversas famílias, divididas em quartos, com banheiro coletivo, cômodos sem ventilação, entre outros pontos.
No verão, foi comum a proliferação de doenças como a tuberculose, o sarampo, hanseníase, febre amarela e varíola, o que deixou as ações mais intensas do “Bota Abaixo”, como ficou conhecida a política de derrubada de casas, cortiços e casarões considerados os causadores do foco destas doenças, e de modo acessível, eram lugares que atrasavam os interesses políticos e econômicos. Barbaramente começou a derruba das moradias, famílias foram desalojadas sem nenhum amparo e, como único lugar propicio a se esconder, buscaram os morros e encostas para reconstruir suas moradias.
As construções do embelezamento deixou uma visão descaso para as camadas pobres, onde moradias foram derrubadas para justificar uma melhoria econômica, política e de interesses da burguesia, sendo que de início, nos morros foram cobrados licenças para a construção de barracos.
Podemos citar que ouve momentos que Oswaldo Cruz se propôs a realizar uma reforma nos serviços de saúde, e foi duramente combatido pela oposição, sendo uma delas, como exemplo, a campanha das brigadas de mata-mosquito que passaram a desinfetar ruas e casas, mesmo com o recuso da população em acreditar que um simples mosquito pudesse ser o causador da febre amarela. Cruz foi ridicularizado pela imprensa em 1903. Um ano depois, foi a vez da peste bubônica, e Cruz lançou um esquadrão de 50 homens para percorrer a cidade; espalhar veneno e remover os lixos. Com isso foi criado um novo cargo público: os compradores de rato. Cada roedor custava 300 réis3, e, assim, apesar de todo sofrimento da população, essa medida apresentou resultados satisfatórios.
Nesse mesmo ano, 1904, foi criada a campanha da varíola, que fracassou por vários motivos. O mais forte deles foi a indignação da população, privada do direito à informação e explicações de como funcionava todas estas ações higienistas.
A reforma de Pereira Passos cumpriu a sua missão com êxito, através de apoios e da imposição a tudo que estivesse em seu caminho. Pelo menos vinte mil pessoas foram despejadas e centenas de casarões foram demolidos. Foi a maior intervenção urbana da história do centro da cidade do Rio de Janeiro, no qual as pás e as picaretas foram a expressão da “modernidade”. Apesar deste novo começo, não foi o suficiente para dar fim a todas as preocupações, pois com o desalojamento de tantas pessoas com famílias sem onde habitar, mostrou nitidamente que o Estado tinha um problema de moradia. Desta maneira surgiu a única solução: subir os morros, onde a população carente não saiu das proximidades de seus locais de trabalho. Passou-se da era dos cortiços para entrar na era das favelas.
Segundo Sevcenko (2010: 03):
Nunca se contaram os mortos da Revolta da vacina. Nem seria possível, pois muitos, como veremos, foram morrer bem longe do palco dos acontecimentos. Seriam inúmeros, centenas, milhares, mas e impossível avaliar quantos. Os massacres em geral não manifestam rigor pela precisão.
Apesar de a Revolta ter ocorrido em um pequeno espaço de tempo e espaço, afetou muito mais do que se imaginava, pois como citado nesse artigo, dos túmulos dos estrangeiros como o Rio de Janeiro era conhecido, muitos que ali passaram, seja pelo porto ou pelas redondezas da cidade, foram contaminados pela varíola e pela febre amarela.
A Revolta da Vacina teve o seu destaque merecido na obra de Nicolau Sevcenko (2010), como uma forma do povo de classes populares demostrar a sua força diante de uma exploração, discriminação e do tratamento espúrio a que foram submetidas pela administração pública neste período, início do Século XX. Uma população que somente teve como informação poucas notícias divulgadas pelos jornais de oposição sobre os supostos perigos da vacinação e somado a charges, que serão analisadas adiante. O medo foi constante ao falar, escrever e ler sobre a vacinação. Quando ouvia-se a conversa de que a vacina foi fabricada pelo próprio vírus do mosquito causador, houve total espanto, como se vacinar, trouxesse a morte.
O estopim da revolta deu-se a partir da publicação realizada no dia 09 de novembro de 1904 pelo jornal A Noticia, com destaque ao plano de regularização da aplicação da vacina obrigatória contra a varíola, que assombrou pelos seus efeitos e números de pessoas contaminadas. Contabilizou-se nesse período cerca de 1800 casos de internações no Hospital de São Sebastiao, e com uma soma de óbitos anual de 4201. Segundo um relato de Rui Barbosa no período:
Não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me envenenar, com a introdução no meu sangue de vírus sobre cuja influência existem os mais bem fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte (BARBOSA Apud. SEVCENKO, 2010: 08).
Barbosa demostrou o seu temor diante da vacina neste pequeno trecho citado acima, e deixou claro que o medo e a insegurança passavam em diversas escalas da sociedade, fora os boatos que se estenderam por toda a cidade. Entre alguns, foi dito que a vacina seria aplicada nas nádegas. Outra rejeição era de requisito religioso, onde africanos e ex-escravos suspeitavam das práticas dos brancos. Assim esses procuravam os seus curandeiros, onde acreditavam que a varíola seria um castigo infligido pelo orixá Omolu ou Obaluaiê.
A mobilização contra as reformas autoritárias do governo deu-se início por volta de 5 de novembro de 1904 com a formação da Liga Contra a Vacina Obrigatória, sob a presidência de Lauro Sodré, com o apoio das Classes Operarias, onde com ajuda de outros líderes trabalhista, Barbosa Lima e Vicente de Souza, buscaram apoio no plano de derrubar do poder o Presidente Rodrigo Alves e restabelecer um regime militar com conceito de “uma nova república”. Marcou-se assim uma reunião com o objetivo de desencadear a Revolta: “Logo na manhã desse dia 11, a Liga Contra a Vacina Obrigatória havia marcado um comício a ser realizado no Largo de São Francisco de Paula, desafiando a proibição policial” (ibidem: 11).
Este foi o estopim do primeiro confronto, onde com a ordem de intervir. Os policiais foram recebidos com vaias e provocações, onde ao tentarem realizar prisões, foram agredidos com pedras. Bares, bancos, comércio e repartições públicas fecharam as portas, e a população aglomerou-se nas ruas centrais: Rua do Teatro, do Ouvidor, Sete de Setembro, Praça Tiradentes. O combate foi intenso. De um lado policiais armados de carabinas curtas e com tropas de infantaria, e do outro, uma população acuada que se refugiou em diversas casas vazias.
Segundo relatos da época: “Bondes começam a ser atacados. Lojas do Centro são apedrejadas. Nas ruas, ardem colchoes em meio a latas viradas. Surgem barricada. Até Copacabana, os lampiões são quebrados. Há escaramuças contra a polícia...”. Por todos os lados ouvia-se “Abaixo a vacina”. O governo reagiu com tropas vizinhas (Niterói e até de São Joao del Rei) (1904-Revolta da Vacina, 2006: 36). E no dia 12 de novembro de 1904, a população tomou a Praça Tiradentes. A Liga perdeu o controle da revolta, e a força policial avançou sobre o povo, retomou as ruas, tiros foram disparados por todos os lados, e a população refugiou-se na Rua do Sacramento. Barreiras foram formadas com: carroças, tilburis e carros de praças. O tumulto se espalha para outros bairros.
A rebelião ganhou uma energia inimaginável, com uma fúria incontrolável, formada não somente por pessoas de classes inferiores, como também por intelectuais e militares descontentes com o governo, somados a lideres operários. Todos unidos, com pensamentos diferentes, mas em luta com a “classe dos excluídos”, contra a Primeira Republica e o seu modo de governar. Com o quebra-quebra, os policias perderam o controle e acabou sendo necessária a intervenção da marinha e do exército para conter as manifestações. O ataque em conjunto com novos soldados foi feita por terra e mar. No dia 16 de novembro de 1904, com a pressão sob o governo, declarou-se revogada a obrigatoriedade da vacina. Mas ainda houve conflitos isolados nos bairros da Gamboa e da Saúde.
No dia 20 do mês e ano citados acima, a rebelião definitivamente teve-o seu fim, com um número incalculável de mortos e feridos, perdas e danos materiais, barreiras de arame farpado, perfurações de bala por toda parte, manchas de sangue, cavalos mortos, entre outras cenas horríveis. Com uma atmosfera geral de terror, a cidade que se encontrou irreconhecível. Iniciou-se uma operação de “limpeza”, com cerca de mil detidos e 460 pessoas foram deportados para o Acre.
Oswaldo Cruz que foi alvo principal das hostilidades continuou a frente da chefia da Diretoria-Geral de Saúde Pública (DGSP), e manteve valida a exigência do atestado de vacinação para contrato de trabalho, viagem, casamento, alistamento militar, matriculas em escolas públicas e hospedagem em hotéis. Enfim, a revogação da obrigatoriedade foi feita, mas os transmites para a vacinação ser realizada continuou, pois para ser cidadão atuante na cidade, necessitaria estar vacinado.
O comandante das forças policiais do Rio de Janeiro disse para Rodrigues Alves que a população rebelde contava apenas com “desordeiros e desclassificados de toda espécie”, onde Sevcenko (2010: 98) contestou ao citar que
A violência policial se distingue não só pela sua intensidade e amplitude, mas sobretudo pelo seu caráter difuso. Não importava definir culpas, investigar suspeitas ou conduzir os acusados aos tribunais. O objetivo parecia ser mais amplo: eliminar da cidade todo excedente humano, potencialmente turbulento, fator permanente de desassossego para as autoridades.
A população foi excluída dessa “regeneração” como foi citado por Sevcenko, ao mostrar o entusiasmo da classe alta, que se beneficiaram dos novos replanejamentos, para os seus disfrutes, sem a presença da classe excluída. Nos centros, após a Revolta e o Bota Abaixo, só restou a Pereira Passos uma reforma geral, que aos seus olhos, era o grande plano de seu governo: passar do “Túmulos dos Estrangeiros” para a “Cidade Maravilhosa”.
As vítimas deste período são fáceis de identificar: pessoas humildes, trabalhadores, desempregados, negros, entre outros que não eram aceitos por sua religião, hábitos, cultura, entre outras características. Restaram-lhes apenas assistir dos altos dos morros o processo de grande “embelezamento” da cidade. Em uma resenha do livro de Sevcenko, Antonio Celso Ferreira (2010: 03) definiu a Revolta como um “ensaio interpretativo seminal sobre um dos mais emblemáticos motins urbanos da história brasileira do século XX”, e demostrou assim que a revolta e a força do povo, tomou proporções imagináveis no início do século XX.
2. Traços da Revolta: ensaio de análise visual
2.1. Sobre as charges
O presente artigo consiste em um enquadramento de charge política e social, que retrataram os temas de interesse coletivo durante a Revolta da Vacina de 1904. Ao serem divulgadas pela impressa da época, essas imagens tornaram-se uma fonte de informações visuais desse acontecimento.1
Como se pode analisar segundo Alberto Gawryszewski (2008: 13), a imagem, seja na forma de caricatura ou charge, tem o poder de formar opinião, de conscientização e de crítica da realidade social e política de uma época. Ela reforça valores populares e auxilia na preservação da herança cultural de um povo, é reveladora, desmistificadora e coloca às claras as contradições que envolvem as ações daqueles que detêm o poder.
Na charge, as imagens e grafismos buscam o resumo das situações reais que ocorrem na política e na sociedade. Ambas são geradoras de críticas e, especificamente sobre a charge política “vai além do simples conceito de caricatura como traços característicos e físicos do personagem; engloba preocupações sociais e políticas daquele que produz a arte, ou seja, um profissional engajado” (ibidem).
Já Rozinaldo Miani (2014: 140), remeteu a uma análise historiográfica sobre as fontes visuais no estudo de história, demostrando a valorização que a charge tem adquirido dentro de determinados estudos, se tornando até o principal objeto e fonte de pesquisa. Principalmente para o autor, as charges podem dialogar com os textos dos jornais, ou apenas passar a sua mensagem pelos seus traços, ou pela sua autonomia temática:
Ao analisar a presença da charge nos mais diversos contextos comunicativos impressos, observamos que ela aparece em situações e formas bastante variadas. No entanto, verificamos a predominância de duas condições estruturais básicas: como acompanhamento de textos verbais ou como autonomia temática.
No artigo de Fabio da Silva Sousa (2014), sobre o comunismo mexicano, é apresentado uma interpretação das charges publicadas no jornal do Partido Comunista Mexicano (PCM), El Machete, que retratou temas políticos e destacou vários assuntos que lhes remeteram a criação de um Comunismo Visual Mexicano, nas décadas de 1920 e 1930. Assim, o autor demostrou a importância e a força política das charges, em diálogo com o artigo de Gawryszewski (2008), em concordância com o poder de influência que as charges possuem diante a opinião pública de cada realidade.
Justificado o nosso tema de pesquisa, agora, vamos propriamente à análise das charges da Revolta da Vacina.
A charge acima de J. Carlos foi publicada em 12 de agosto de 1904 no jornal Tagarela, do Rio de Janeiro, e apresenta a imagem de dois homens conversando, no qual um diz ao outro: “Palavra de honra, seu aquele! No primeiro que puser a mão no braço de minha mulher eu ponho-lhe o pé na cara!”.
Essa conversa entre os personagens com traços e formas de “homens de bens”, que destacasse pelo desenho das roupas e pelas expressões faciais, demostra que no momento de publicação dessa charge, 1904, a população, seja de posses ou menos desfavorecidas, estavam assustadas pelas informações disseminadas sobre a vacina. Muitos desses falatórios se destacavam pelo atentado ao pudor das mulheres, que cogitava a nudez dos braços ou nos casos mais radicais, em despir-se para os vacinadores, também conhecidos como sanitaristas. As mulheres deveriam ser defendidas pelos seus maridos, como a charge acima explicitou. Sobre essa questão, o deputado Barbosa Lima pronunciou-se:
(...) lei obscena, lei... ignominiosa, pois só o médico da Saúde Pública, tem competência para dizer se tal criatura mostra a cicatriz da vacina em membro inferior, dando-se-lhe assim “carta de corso” para a mais infame pirataria, contra a qual todas as insurreições serão eternamente gloriosas (1904-Revolta da Vacina, 2006: 30).
Uma figura importante neste momento foi de Barbosa Lima, que apresentou o constrangimento moral que as mulheres passariam ao expor a estranhos, as partes íntimas dos seus corpos, como braços, coxas e nádegas.
Os despontamentos da população sobre a forma que como os sanitaristas impuseram sobre a cidade o seu poder, deixou a população inquieta e insegura, e pais de famílias foram obrigados a deixar as suas casas, em uma época conservadora, para que sanitaristas vacinassem as suas esposas e crianças, sem o consentimento das mesmas, cujo ápice seria despir-se a alguém totalmente desconhecido.
A próxima charge (fig. 02), “Conferencia sinistra”, de autoria de R. Raul, foi publicada no Tagarela em 25 de agosto de 1904, e apresenta uma crítica a todo o trabalho de Oswaldo Cruz contra a peste bubônica, a febre amarela e a varíola.
A ilustração apresenta a imagem da Morte identificada com a febre amarela, a varíola e a peste bubônica, com os chapéus dos sanitaristas. O desenho é uma representação do medo da população ao saber que a vacinação era fabricada pelo mesmo agente causador, o que lhes causou muito medo. Até mesmo por falta de informação, começou a sair ideias de que os sanitaristas, por meio da vacina, dizimariam a população pobre de Rio de Janeiro. Outra análise que podemos realizar, é que apesar de todo esforço de Oswaldo Cruz contra as epidemias (febre amarela, varíola e peste bubônica), essas doenças continuavam infectando e matando as pessoas. Ou seja, Oswaldo Cruz era um fracassado no combate as doenças. A imagem da charge segue abaixo:
Vejamos outra charge:
A ilustração acima foi publicada na revista Avenida em 08 de outubro de 1904, cujo os traços foi assinado apenas por Sil. Na imagem, um possível médico (destacamos essa afirmação pelo desenho da maleta em sua mão esquerda), interroga uma moça: “A Sra. Já foi vacinada?”. Na charge ela respondeu: “Sim, na noite do casamento!”
As leis autoritárias que o governo, junto com Oswaldo Cruz, utilizaram para que a vacinação fosse de cunho não obrigatório, mas que alcança-se a todos, foi que tornou-se necessário ter o laudo de vacinação para que cada pessoa pudesse exercer a sua cidadania.
O decreto estabeleceu que quem não estivasse em dias com a vacinação seria multado, não poderia matricular-se em escolas, ter acesso a empregos públicos, casamentos seriam cancelados. Abaixo segue parte do decreto:
Parágrafo Único. Os chefes das repartições serão responsáveis pelo cumprimento do presente artigo, sob pena de multa de 500$ ou suspensão por seis meses.
Art. 28°. Ninguém poderá contrair casamento sem apresentar os atestados que provem o cumprimento disposto nos arts. 10 e 20 (ibidem 1904: 101).
Destacamos na charge as roupas que a moça está trajando, vestimentas elegantes e que cobre todo o seu corpo, o que nos leva ao outro tema tabu dessa época, início do século XX, que é a virgindade, a pureza da mulher diante de uma sociedade patriarcal. Pois, quando o homem a interroga sobre a vacinação, ela responde que sim, e que ainda foi na noite do casamento, o que nos leva a nos interrogarmos, se o ato de vacinar, no caso das mulheres, seria o mesmo que perder a virgindade. Ou seja, ela se tornaria uma cidadã respeitada na sociedade, como se fosse uma mulher casada que tivesse acabado de perder a virgindade.
Houve a publicação de uma charge (fig. 04) de um suposto enterro da lei da vacina obrigatória, com uma seringa encostada em uma lápide com a seguinte frase “aqui jaz a vaccina obrigatória”. Esse desenho foi publicado no Tagarela, em 22 de outubro de 1904.
No momento da publicação dessa charge ainda se cogitava a obrigatoriedade da vacina, que, como já descrito ao longo do artigo, não foi aceita pela população.
Oswaldo Cruz buscou nos asseios políticos da época apoios, para que tivesse o poder de resolver essa questão. Ele conseguiu essa façanha em 31 de outubro de 1904, quando elaborou e redigiu a obrigatoriedade da lei, que, novamente como já demonstramos, veio a dar início a maior revolta do Rio de Janeiro do início do século XX. Mas, antes disso, a imprensa do período apostou no enterro dessa lei, como podemos conferir na referida charge abaixo:
Considerações Finais
A revolta da vacina foi um grande acontecimento, que uma população se revoltou pelo descaso que sofreriam por ações autoritárias de um governo que apenas se importava com a beleza.
A Revolta da obrigatoriedade da vacina se baseou em questões sociais e políticas, de uma transparência negada ao povo, e tornou-se um problema maior do que o imaginável, no qual a força de expressão foi pelas lutas, a única saída dessa população ser ouvida. A imposição sanitarista, o “Bota-Abaixo” de Pereira Passos, e todos os impostos desumanos e arbitrários, impossibilitaram muitos de serem cidadãos, que lutavam diariamente pelo seu sustento.
A Revolta da Vacina teve a sua visibilidade não apenas na figura humana, mas também por artistas que desenharam diversas charges. Nesse olhar, que foi o objeto de análise desse artigo, destacasse as análises que foram publicadas pela imprensa da época, principalmente pelo jornal Tagarela, mas houve outras publicações, como a revista A Notícia. Através desses traços, foram expressados os momentos vivido pela população do Rio de Janeiro, os medos e as desconfianças de pessoas, não apenas simples, como também de uma parte da elite. Por meio das charges e da bibliografia, foi possível analisar um olhar diferenciado sobre essa Revolta, que mostrou o que foi divulgado pela imprensa da época, com humor e crítica.
A modernização e a transformação tão almejada pelo governo foram de fato consagradas, primeiramente pelo “Bota Abaixo”, seguido da Revolta, que terminou de destruir o centro da cidade do Rio de Janeiro, e deixou um cenário assustador, que anos depois daria lugar a “Cidade Maravilhosa”. Os excluídos continuaram nos morros, tentando a vida e a elite continuou em seu patamar, usufruindo de um novo embelezamento.
Apesar de uma escravidão mental reinar diante dessa população, as charges tornaram-se um refúgio, que mostrou o medo dos excluídos e da parte nobre da cidade do Rio de Janeiro, em 1904, diante de uma lei obrigatória que não foi esclarecida para todos.
A importância em analisar as charges da Revolta da Vacina neste artigo, e apresentar esse olhar, demonstra uma nova vida a história por trás da luta de um povo por sua cidadania. Esses traços revelam uma parte do cotidiano que foi vivenciado naquele momento, e tivemos a oportunidade de captar momentos importantes que podem ter sido passados despercebidos, o que justifica o valor de estudar essas fontes nesse presente artigo.
Notas
1 Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em formato de artigo, apresentado como requisito parcial de nota para obtenção do título de graduada em Licenciatura no Curso de História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Nova Andradina (UFMS/CPNA).
2 Para compor esse capítulo do artigo, foram utilizados como fonte e bibliografia os trabalhos de Jaime Larry Benchimol (1992), José Murilo de Carvalho (1997) e em especial, a obra já considerada clássica de Nicolau Sevcenko (2010).
3 300 réis no ano de 2016 seria equivalente a R$ 30,00.
4 As charges analisadas no presente artigo foram retiradas do livro “1904 – Revolta da Vacina. A maior batalha do Rio”, publicado em 2006 pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas:
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical: A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
FERREIRA, Antônio Celso. Sevcenko cria estudo seminal sobre motim. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 3 set. 2010. E6. Ilustrada Crítica, Ensaio.
GAWRYSZEWSKI, Alberto. Conceito de caricatura: não tem graça nenhuma. In: Domínios da Imagem. Londrina, PR: UEL/LEDI, Ano I, nº 2, p. 07-26, maio de 2008.
MIANI, Rozinaldo. Charge editorial: iconografia e pesquisa em História. In: Domínios da Imagem, Londrina, v.8, n. 16. p. 133-145, jun./dez, 2014.
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo, Cosac Naify, 2010.
SOUSA, Fábio da Silva. Imagens da Revolução: Imprensa e comunismo visual nas páginas do El Manchete (México, 1920-1930). In: SILVA, Zélia Lopes da (Org.). Anais do 7 Encontro do CEDAP: culturas indígenas e identidades. Assis: UNESP – Campus de Assis, 2014, p. 156 – 167.
1904 – Revolta da Vacina. A maior batalha do Rio. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. – A Secretaria, 2006. (Cadernos da Comunicação. Série Memória).
Texto originalmente publicado em https://www.infoescola.com/historia/as-charges-da-revolta-da-vacina-ensaio-de-analise-visual/