A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada durante o governo presidencial de Dilma Rousseff, em 18 de novembro de 2011, com o propósito de “resgatar a memória de violações aos direitos humanos” promovidas por Agentes do Estado contra opositores políticos entre os anos de 1946 e 1988 (Cf. Relatório CNV). A CNV surgiu para somar esforços na averiguação de casos de mortos e desaparecidos políticos, colaborando, dessa forma, com os familiares que desconheciam os reais paradeiros de irmãos, filhos, pais que desapareceram no período em questão. A Comissão respaldou-se na Lei 12.528 que prevê a nomeação de sete brasileiros idôneos para compô-la, designados pela presidente da República. Para reconhecer esses crimes e indenizar as vítimas foi necessário reinterpretar a Lei da Anistia promulgada em 28 de agosto de 1979.
A Lei da Anistia permitiu absolvição de crimes políticos cometidos durante o regime ditatorial militar (1964-1985) tanto por militantes políticos opositores ao regime como por agentes do Estado. Essa lei editada durante o governo do general João Figueiredo foi uma das medidas da “transição lenta, gradual e segura” iniciada no governo do general Geisel. A lei pretendia assegurar a transição entre o regime ditatorial militar e a “democracia” liberal sem que o Estado e seus agentes fossem responsabilizados pelas mortes, torturas e perseguições que realizaram, assim como os militantes políticos perseguidos puderam retornar do exílio e tiveram os direitos políticos restituídos. No artigo 12 da Lei da Anistia está previsto que não haverá indenizações ou ressarcimentos de qualquer ordem aos anistiados.
Uma nova apreciação da Lei da Anistia foi realizada no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) versus Brasil, de 24 de novembro de 2010, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Nesse julgamento considerou-se que o impedimento de investigação e punição das violências promovidas pelos agentes do Estado é antagônico à associação do Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos. A Corte IDH determinou também que o Estado fosse responsabilizado pelas mortes e desaparecimentos de corpos dos guerrilheiros do Araguaia e que esse crime fosse tipificado de acordo com parâmetros internacionais. Para investigar e reparar casos de violência do Estado, a Corte IDH sugeriu a criação de uma Comissão Nacional da Verdade no Brasil.
A CNV no Brasil possuiu algumas peculiaridades em relação a outras comissões que também pretenderam “examinar e esclarecer graves violações aos direitos humanos” (Artigo 1º, da lei 12.528). O primeiro foi a sua promulgação em forma de Lei, nos demais países em que se estabeleceram Comissões semelhantes o poder Executivo as constituíram. A Comissão Nacional da Verdade brasileira foi a que examinou casos ocorridos durante um espaço temporal maior que os demais, os marcos estabelecidos foram as promulgações das duas Constituições alinhadas à democracia liberal: A Constituição de 1946 e a Constituição de 1988. A CNV no Brasil também investigou casos que ocorreram fora do território nacional, situações semelhantes foram raras em outras Comissões. Dentre as semelhanças com outras Comissões estiveram os vínculos estabelecidos pelo Estado brasileiro com tratados de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Esses vínculos foram o principal critério para a sugestão da Corte IDH da criação de uma Comissão da Verdade no Brasil.
A CNV foi precedida pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e pela Comissão da Anistia que também reivindicaram a responsabilização do Estado pelos militantes políticos mortos e desaparecidos durante a Ditadura Militar (1964-1985). A atuação dessas comissões possibilitou o reconhecimento de que os mortos e desaparecidos em decorrência da atuação política foram vitimados pela repressão sistemática do Estado. Após o reconhecimento desses crimes do Estado, indenizaram-se os familiares e foi promovida a reparação moral possível no marco do liberalismo. Essas reparações também foram prestadas a quem sofreu perseguição política, foi preso ilegalmente, torturado, demitido ou forçado ao exílio.
Foi estabelecido caráter temporário para a CNV, assim como o era em modelos semelhantes de mecanismos de “Justiça de Transição” criados em mais de trinta países, dessa maneira, a CNV encerrou as atividades em 10 de dezembro de 2014, como previa a Lei 12.528. A Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), elaborada simultaneamente a Lei de criação da Comissão Nacional da Verdade, auxiliou a atividade da comissão por garantir o acesso a documentos que versavam sobre violência de Agentes do Estado. E, segundo o Relatório final da CNV, caberá à Lei de Acesso à Informação a continuidade do “direito à memória e à verdade histórica” devido à exigência da transparência no trato das informações públicas que podem ser acedidas por qualquer pessoa e/ou entidade (Cf. Relatório CNV). O material coletado pela CNV foi cedido ao Arquivo Nacional que disponibiliza o acervo por meio do Projeto Memórias Reveladas.
Apesar de investigar casos de tortura e assassinatos promovidos por agentes estatais e relatar as autorias deles, não coube à CNV julgar efeitos penais aos casos. Desse modo, nenhum torturador investigado foi preso ou punido de qualquer outra forma, mesmo havendo sugestões de órgãos internacionais de que esses casos deveriam ser penalizados de acordo com parâmetros internacionais. Também não coube à CNV averiguar casos de violência de agentes do Estado em períodos anteriores e posteriores aos propostos, a despeito dos reiterados casos de tortura e assassinatos promovidos pelas polícias militares no país, cometidos após a elaboração da Constituição de 1988. Assim, pode-se notar que não esteve entre os propósitos da Comissão Nacional da Verdade investigar casos de violências de Estado após o alinhamento do país aos tratados de direitos humanos dos órgãos internacionais.
Referências
Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/ Comissão Nacional da Verdade. Vol. 1. Brasília: CNV, 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf. Acessado em 08 de fevereiro de 2020 às 9h e 53m.
Lei nº 6.683. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm Acessado em 08 de fevereiro de 2020 às 9h e 49m.
Lei nº 12.528. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm. Acessado em 07 de fevereiro de 2020 às 9h e 46m.