A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi uma manifestação pública de grupos conservadores, antipopulistas e anticomunistas contrários às reformas de base propostas pelo então presidente da República, João Goulart (1961-1964). A primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi realizada na cidade de São Paulo, em 19 de março de 1964, planejada em resposta ao comício pelas reformas de base ocorrido no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964. Estima-se que o comício pelas reformas reuniu cerca de duzentas mil pessoas em frente à Central do Brasil. Já a Marcha arregimentou entre duzentas e quinhentas mil pessoas que transitaram entre a praça da República e a praça da Sé. (Cf. CODATO & OLIVEIRA, 2004.)
A Marcha da Família foi precedida por seis reuniões preparatórias. A princípio chamava-se “Marcha do Desagravo ao Santo Rosário”, denominação que ressaltava a relação do movimento com a religião católica. Na reunião do dia 14 de março, o nome da marcha foi alterado para Marcha da Família com Deus pela Liberdade para agregar grupos de outros credos religiosos. Apesar de a Igreja Católica deixar de ser o único credo envolvido na organização da manifestação, ainda permaneceu a religião predominante no processo, tanto que ao fim da Marcha foi realizada uma “missa pela salvação da democracia”. Entre as palavras de ordem da Marcha havia as de cunho religioso como “a favor da consciência cristã no Brasil”, além das de cunho políticos: “Reformas sim, Comunismo não” e “Tá chegando a hora de Jango ir embora”. (Cf. Idem)
A Marcha paulista reivindicava a Constituição de 1946, a “democracia” liberal, a intervenção estrangeira na economia nacional e a defesa da propriedade privada; pautas que na concepção dos organizadores estavam postas em xeque pelas reformas do governo de Goulart. Dentre as reformas de base que eram mais rechaçadas por esses setores conservadores estavam a reforma agrária e a redução da intervenção estrangeira na economia nacional, pois afetavam diretamente, respectivamente, a retenção de extensas propriedades nas mãos de poucos e a interferência estadunidense na economia do país.
A organização da Marcha foi realizada, principalmente, por parcelas da classe média urbana (pequenos empresários, donas-de-casa e profissionais liberais) que compunham entidades femininas, religiosas, associações civis e de classe e sindicatos patronais. As associações que construíram a Marcha foram:
Entidades femininas
- Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE) (Rio de Janeiro)
- Liga da Mulher pela Democracia (LIMDE) (Belo Horizonte)
- União Cívica Feminina (UCF) (São Paulo)
- Movimento de Arregimentação Feminina
Religiosas
- Fraterna Amizade Cristã Urbana e Rural
- Círculos Operários Católicos
- Associações Cristãs de Moços
Associações civis e de classe
- Associação Comercial de São Paulo
- Sociedade Rural Brasileira
- Clube dos Diretores Lojistas
- Conselho de Entidades Democráticas
- Campanha para Educação Cívica
Sindicatos patronais
- Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
- Centro das Indústrias do Estado de São Paulo
(Cf. Idem)
Além dessas entidades havia o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) que fomentava o Golpe Militar e que teve participação ativa na organização da Marcha. O IPES formado, em 1961, por empresários e militares da Escola Superior de Guerra (ESG) dedicava-se à produção intelectual de temas brasileiros, com teor conservador e de direita. O IPES recebia habitualmente doações de corporações estrangeiras, principalmente estadunidenses, que pretendiam disseminar no Brasil uma ideologia anticomunista e derrubar o governo reformista de João Goulart. Também competiu ao IPES o financiamento e apoio às entidades femininas, que se destacaram na organização e na direção da Marcha. (Cf. STARLING)
A Marcha paulista também contou com a participação de destacados políticos conservadores do país na organização, como o deputado Antonio Sílvio da Cunha Bueno e Ademar de Barros. Compareceram à manifestação, o então governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, e o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade. A Marcha da Família evidenciava o caráter putschista dos grupos que a organizaram e pode ser sintetizada na frase de Carlos Lacerda sobre o processo político brasileiro em vigência: “golpes para evitar golpe” (Apud. CODATO & OLIVEIRA). Antes que João Goulart pudesse efetivar um golpe para permanecer no poder, os setores acima mencionados se organizaram e contribuíram para o Golpe Militar de 1964. Ao final da manifestação, foram distribuídas cópias do Manifesto ao povo Brasileiro que convocava a população a se mobilizar contra o governo de João Goulart.
Demais Marchas da Família com Deus pela liberdade estavam previstas para serem realizadas em outras cidades do país que continuariam a oposição ao governo de João Goulart. No entanto, o Golpe Militar as antecedeu, em 31 de março de 1964. E as outras Marchas pela família passaram a se chamar de “Marchas da Vitória”, pois alcançaram o principal propósito da manifestação: a deposição do governo de João Goulart.
Referências:
Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/ Comissão Nacional da Verdade. Vol. 1. Brasília: CNV, 2014. p. 47. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf. Acessado em 18 de fevereiro de 2020 às 10h e 10m.
CODATO, Adriano Nervo & OLIVEIRA, Marcus Roberto de. “A marcha, o terço e o livro: catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964.” In: Revista de História. vol. 24, nº 47, São Paulo, 2004.
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 48.
____________. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 242.
LAMARÃO, Sérgio. Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/AConjunturaRadicalizacao/A_marcha_da_familia_com_Deus. Acessado em 22 de fevereiro de 202 às 10h e 18m.
STARLING, Heloisa. O Golpe Militar de 1964. Disponível em: https://www.ufmg.br/brasildoc/temas/1-golpe-militar-de-1964/. Acessado em 24 de fevereiro de 2020 às 10h e 04m.