O livro Inocência (1872) de Visconde de Taunay é um romance construído a partir de impressões e lembranças da realidade natural e sócio-cultural do sertão mato-grossense. Além disso, analisa os valores comportamentais do sertanejo, fazendo com que esta obra, mesmo se tratando de uma história sentimental, apresente um “toque” naturalista, um realismo descritivo e um tom documental, fruto da experiência de Taunay como redator oficial do Diário do Exército.
O romance conta a história de amor impossível envolvendo Inocência, filha de Pereira, um mineiro rude, pequeno proprietário da região e Cirino, um aprendiz de farmacêutico que se autodenomina médico. O relacionamento dos dois é inviável porque Inocência é prometida a Manecão Doca, um rústico vaqueiro das redondezas e também porque o pai vive a vigiar a filha, para garantir-lhe a integridade até o casamento.
São poucos os personagens que aparecem nesta história. De um lado, a casa de Pereira, onde encontramos: ele, a filha, o anão (espécie de guardião de Inocência), o noivo “ausente”, um filho – apenas mencionado na história e mais dois personagens: Chiquinho, irmão de Pereira que se corresponde por carta com a família e Antônio Cesário, padrinho de Inocência.
Pereira é o centro da família de tipo patriarcal rural, possuidora de certa posse, personificando tipicamente, por assim dizer, os valores do homem rústico em suas relações com a família e os moradores da redondeza. O narrador chama-lhe “legítimo sertanejo, explorador dos desertos”. Homem nômade, instalou-se num retiro “perdido” no cerrado do sul do Mato Grosso.
A situação da mulher, no entanto, é bem adversa. A única educação que Inocência recebera foi com relação às tarefas domiciliares, “treinada” à obediência passiva em relação ao pai e depois ao marido escolhido por ele.
O nome Inocência revela traços da personalidade da moça: delicada beleza, aos olhos do apaixonado Cirino e do naturalista Meyer, encantado com todas as belezas naturais; natural inocência frente ao mundo civilizado, que vagamente imaginava em sua mente; inocência diante do amor, despertado por Cirino, com ousadas e desatinadas ardências, que em nada aparenta ser inocente.
Negociado o casamento, Manecão passa a ser admitido na intimidade da família, assumindo aos poucos os “encargos” de chefe familiar. É aí que aparecem Cirino e Meyer, gerando o conflito.
Cirino, auto-intitulado médico, instruiu-se no respeitado Colégio Caraça de Ouro Preto. Prático em farmácia, possuía um famoso Dicionário de Medicina Popular, um Chernoviz, referência ao autor do compêndio, espécie de “livro de cabeceira” para orientá-lo no tratamento das doenças populares do sertão.
Apesar de sua instrução, que o liga ao mundo urbano, suas origens e sua profissão mantêm-no ao mundo rural. Ele conhece e respeita os valores desse universo, embora discorde da postura de Pereira com relação à mulher.
Um componente que orienta a narrativa é o acaso. Foi por acaso que Pereira conhecera Cirino, na estrada, a caminho da vila de Sant’ana do Parnaíba, que por coincidência menciona a doença da filha e Cirino se prontifica a curá-la. Sem essas circunstâncias, não seria possível introduzi-lo na família. Nasce, a partir do encontro entre “médico e paciente”, a paixão mútua, impedida pelo comprometimento com Manecão.
Meyer também contribui para o desequilíbrio familiar por uma única razão: ele desconhece as rígidas normas de comportamento familiar do sertão, pois é um naturalista alemão, um homem urbano. Ele é recebido por Pereira, de posse de uma carta de seu irmão mais velho, recomendando-lhe que o recebesse como o próprio irmão. O conflito começa quando Meyer, ingenuamente, passa a elogiar a beleza de Inocência, em termos não adequados ao ambiente rústico do sertão. Essa diferença entre os valores europeus e os do meio rural brasileiro é decisiva para que Pereira sentisse ameaçada a integridade moral de Inocência, passando a vigiá-lo constantemente, abrindo caminho para o amor crescente de Cirino e Inocência.
A resistência do casal se dá dentro dos limites e respeitando os valores desse ambiente onde vivem, pois estão em cheque a autoridade paterna e os direitos do noivo. Esses valores ainda resistem à nova forma de encarar o casamento, presente nos meios urbanos.
O desfecho do romance se encaminha para a eliminação do casal amoroso e da desarmonia gerada por ele. Inocência morre, mas é imortalizada, renascida, como nome de borboleta – Papillio Innocentia – pelo naturalista Meyer, libertando-se do sertão e integrada para o mundo da ciência.
Fontes
AMORA, Antônio Soares. A Literatura Brasileira – Romantismo. 3 ed. São Paulo, Cultrix, 1963, p. 285-2.
REIS, Zenir Campos. Tradição e traição. In: TAUNAY, Visconde de. Inocência. Série Bom Livro. 27 ed. São Paulo, Ática, 1998, p. 03-06.