A matemática, mais antiga das ciências, não é somente revestida pelo tabu em aprendê-la, mas também pelo tabu em ensiná-la. Dessa afirmação, imagina-se simplesmente que a matemática é somente pra os gênios, pessoas com o Dom específico em lidar com os números, com as formas e com as tantas propriedades que os envolve. Porém, não creio que matemática seja apenas para os escolhidos. A responsabilidade de conhecimentos sólidos depende de uma boa formação, desde a educação básica até o ensino superior. Mas não apenas a formação que nos é transmitida na escola ou na universidade, e sim, também, a formação adquirida com estudos próprios, com esforço próprio: a autoformação.
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Os motivadores do fracasso
Em especial, no que se refere ao ensino da operação básica multiplicação, a didática aplicada para a sua realização é questionada na maioria dos casos. Costumeiramente percebe-se uma exposição de conceitos vagos, sem sentido algum aos alunos. Definitivamente, o que se chama de multiplicação nessa etapa de ensino na verdade é algo infundamentado e fora da realidade a qual ela realmente pertence.
Existe nisso tudo uma realidade batida e ainda sem solução: a formação do professor pedagogo. Há alguns cursos de pedagogia que trabalham os aspectos teóricos do ensino, mas também as aplicações do conteúdo em sala de aula. A importância de apresentar ao professor as diversas maneiras de lidar com um determinado conteúdo é indubitável. Nesse contexto, as aulas práticas de estágio ganham destaque e se tornam indispensáveis para uma formação sólida do professor, principalmente no que se refere ao reconhecimento do seu objeto de ensino. Mas nem todos os cursos de formação em pedagogia (e em muitas outras áreas) têm esses requisitos primordiais. Na verdade, grande parte das instituições de ensino superior está formando professores incompletos e inadequados à realidade da educação moderna, e isso inclui a defasagem no ensino de matemática.
Ao se analisar panoramicamente essa triste realidade, percebemos um padrão um tanto claro nos principais casos de déficit teórico-metodológico do ensino de matemática: os professores com formação antiga e sem atualização são os principais promotores de um ensino ultrapassado e inadequado da meta ciência. Com certeza esses professores não detêm essa exclusividade, mas é neles que ela se manifesta com maior frequência.
O problema da formação antiga e sem atualização gera uma enorme problemática para a educação e os motivadores disso podem ser visualizados com razoável clareza. Sabemos que o modelo de família se modifica a cada período não muito longo de tempo, com isso os discentes são também modificados e o ensino consequentemente sofre sérias mudanças. Os vários pesquisadores no campo da educação tentam adaptar o ensino a essas mutações constantes. Disso surgem novas didáticas, novos paradigmas de aluno, de professor, de escola, de família e de sociedade. Se praticamente tudo muda na educação e na sociedade em curto período de tempo, a formação do professor deveria também seguir essas mudanças, porém isso, na maioria das vezes, não acontece.
Nessa análise breve e superficial dá para perceber alguns dos motivadores de um ensino fracassado de matemática (e das disciplinas em geral). Recentemente, uma pesquisa realizada pela OCDE, por meio do Pisa, detectou que no Brasil apenas 12% dos alunos com faixa etária de 15 anos e matriculados no 9º ano do Ensino Fundamental II sabem matemática. Isso significa que 9 em cada 10 alunos nessa etapa do ensino não sabem matemática no Brasil. Os dados são alarmantes e muito preocupantes.
Como não ensinar multiplicação
Observando a aula de matemática de uma professora do polivalente percebi a concretização do que a pesquisa acabara de apontar. Ela ministrava a aula com convicção de que seus métodos arcaicos estavam dando frutos e eram condizentes com o paradigma atual do ensino de matemática. O tradicionalismo em suas palavras e o autoritarismo em suas atitudes evidenciavam a sua desatualização. Transcreverei, nos limites das minhas lembranças, as palavras proferidas por ela aos seus alunos:
“Vamos multiplicar 125 por 4. Primeiro armamos a continha e depois fazemos assim: 4 vezes 5 (20 – responderam os alunos), coloca o 0 e sobe o 2. 4 vezes 2 (8 – responderam os alunos), isso mesmo. 8 mais o 2 de cima é igual a 10; coloca o 0 e sobe o 1. 4 vezes 1 (4 – responderam os alunos), ok. 4 mais o 1 que está em cima é igual a 5. Viram como é fácil? 4 x 125 = 500. Agora resolvam essas 10 contas para aprenderem mais”, disse ela, seguindo com a mesma “metodologia”.
A linguagem utilizada nessa aula é inapropriada, não matemática e duvidosa. Destaquei em negrito alguns termos para que pudéssemos refletir sobre eles, mas também sobre outros.
Inicialmente, não vejo problema em tratar a continha como algoritmo da/do multiplicação/produto. É possível e permitido falar continha, desde que se deixe claro que esse termo é apenas uma simplificação do termo algoritmo. Mas quanta diferença isso faz? A questão não é a diferença e sim as consequências. À medida que o ensino de matemática vai atingindo níveis mais elevados a palavra algoritmo irá surgir e o aluno irá sentir uma enorme dificuldade em descartar o conhecimento adquirido outrora para inserir um novo em seu lugar. Se aprender já é difícil, desaprender é ainda pior. Outros assuntos de matemática também são tratados dessa maneira. É bom lembrar que a palavra não é complexa, ela carrega o mesmo sentido. Complexa mesmo é a maneira que o professor às vezes encontra para explicar o seu conceito.
Fato igualmente importante de se destacar é mecanização do conceito de multiplicação. Os alunos têm os resultados decorados e não compreendem a ideia real de como esses números são adquiridos. Muitos deles, por exemplo, não sabem que uma multiplicação nada mais é do que uma soma agrupada:
Ao invés de compreender o processo de formação do produto e depois aprender os atalhos para o cálculo mental, o aluno já é levado diretamente à decoração da tabuada. É uma pena que a matemática seja reduzida a uma ideia arcaica e ao mesmo tempo simplista.
Em relação às palavras destacadas em negrito, as considero ainda mais absurdas. A professora afirma que se 4 x 5 = 20, então coloca-se o 0 abaixo, no produto, e sobe 2. Sobe 2? Para onde? Por quê? São essas perguntas que surgem imediatamente às afirmações. Nesse ponto é massacrada a ideia sobre os valores posicionais: unidades simples, dezenas simples, centenas simples, unidade de milhar etc. O ideal seria que a professora dissesse que multiplicar 4 por 5, sendo que o 5 está situado na classe das unidades simples, resulta em 20 unidades simples. Porém, 20 unidades correspondem a 2 dezenas, sobrando 0 unidade. Na multiplicação de 4 por 125, deve-se multiplicar o 4 por cada algarismo do 125 e agrupar as unidades, as dezenas e as centenas; por isso em 4 x 5 = 20 colocamos o 0 no produto e somamos 2 às dezenas. Da mesma forma acontece com o restante da multiplicação.
Considerações finais
Neste texto, o foco no ensino na multiplicação não representa um fato único no amplo contexto do ensino de matemática. O problema da desatualização das práticas docentes acarreta uma série de defasagens na aprendizagem e, consequentemente, no ensino como um todo. A formação, em todos os níveis, é importante para manter justo o páreo entre a evolução da sociedade e os conhecimentos adequados para lidar com essas mudanças. Para isso, não se pode apenas esperar dos governantes a criação de políticas públicas que contemplem a especialização do docente, é preciso criar responsabilidades consigo mesmo, atualizar-se constantemente, ser autodidata se necessário, mas nunca deixar de acompanhar as mutações dos discentes, das famílias e da sociedade como um todo.
“Se a sociedade evolui para atender aos cidadãos, a educação deverá evoluir para atender a sociedade”.
(Robison Sá)