Roda Viva
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração.
(...)
Letra de Chico Buarque, 1968
Nesta música este refrão se repete ao longo de toda a letra, a cada estrofe há uma retomada do refrão. Toda a estrofe mantém uma estrutura de repetição, a qual se pode denominar de Anáfora. A repetição, nesta música, caracteriza o acontecimento e a sua recorrência, enfatizando o movimento provocando no ouvinte a sensação das voltas que o tempo dá.
A linguagem oferece muitos recursos para sua construção, nesse caso o autor, Chico Buarque de Holanda, utiliza diferentes figuras de estilo. Veja a seguir o que o recurso da anáfora, ou a repetição, possibilita para a escrita e para a comunicação em geral.
É necessário pensar a língua como uma expressão do pensamento, das emoções e da criatividade. Ou seja, a linguagem se constitui como um meio que possibilita: a interação social, a elaboração de tradições, a manifestação cultural, o registro das experiências humanas; além da comunicação cotidiana.
Nesse sentido, as figuras de linguagem, sejam elas de sintaxe ou de pensamento, de sons ou de palavras, surgem como um modo de expressar uma emoção, de relatar uma vivência, e não apenas um fato, de conferir efeitos às narrativas de vida ou às poesias impactantes.
É válido ressaltar que as figuras de sintaxe, também denominadas de figuras de construção, correspondem a uma disposição inesperada das palavras nas frases, ou a uma concordância irregular. O que implica afirmar que esse tipo de figura de linguagem decorre de um desvio estrutural da norma gramatical. Entretanto, há algumas construções que também se caracterizam como figura de sintaxe e que não interferem diretamente na estrutura frasal, e menos ainda na norma gramatical. A ANÁFORA é um exemplo de figura de construção que não modifica nem altera a estrutura sintática da frase.
Dessa forma, a ANÁFORA é representada na linguagem com a finalidade de imprimir força ao que se quer expressar, de ressaltar uma situação ou um sentimento. A ANÁFORA é a repetição de palavras ou expressões no início da frase, de um período ou de um verso, quando se trata de poesias ou letras de músicas, por exemplo. A repetição pode ter por objetivo dar ênfase e tornar mais expressiva a mensagem.
Acompanhe a análise de alguns exemplos:
Neste trecho de música de Chico Buarque, há uma repetição de dois versos que ocorre ao longo de toda a letra da música, conferindo à narrativa contida nela a permanência do acontecimento. Trata-se da passagem de uma banda, a repetição do fato usando as mesmas palavras dá um efeito imagético à música, como se fosse possível ver a cena da banda passando e cantando:
A banda
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor. (...)
É válido observar que em muitas construções que se valem desse recurso, a repetição dos termos conduz a leitura para a uma gradação de sentido ou ainda para uma ideia que se amplia pela palavra. A repetição confere ao texto um excesso daquele significado. Observe este efeito no texto a seguir:
Modos de sentir o silêncio
Fez-se silêncio ao tocar nas flores fúnebres sobre o cachão.
Fez-se silêncio ao cair em chamas reluzentes a estrela.
Fez-se silêncio ao subir queimando no ar o balão.
Aquela ausência era tão profunda e dolorosa,
não se ouvia um som.
Joana pedia que lhe contassem algo sobre sua mãe,
Fez-se silêncio.
O silêncio já era tanto que a ensurdecia.
Gritou, gritou, gritou
De desespero Joana.
Fez-se (apenas) silêncio.
(Leticia Gomes Montenegro)
O uso da anáfora é comum, por ser uma estratégia linguística simples, de fácil utilização. A repetição de vocábulos constrói no texto, na maioria das vezes textos versificados, uma expressividade rica e um ritmo agradável. Na oralidade, a repetição se faz útil ao falante que pode retomar a ideia que desejar reforçar várias vezes.
Observe um exemplo de anáfora, no qual a palavra repetida tem seu significado modificado.
Parto do princípio do corpo como metáfora da vida.
Parto de uma nova vida que ressignifica outro corpo.
Parto de uma mãe: luz a uma criança.
Parto para outros destinos,
Rumos da maternidade.
Paragens infinitas.
(Leticia Gomes Montenegro)
Cada vez que a palavra é repetida ela traz um sentido diverso do anterior; “parto” como início, ponto inicial de uma jornada ou um percurso. Parto como o ato de parir, dar à luz, fazer nascer. E por fim, parto do verbo partir no sentido de ir embora, seguir outros rumos.
SOBRE A ETIMOLOGIA DA PALAVRA ANÁFORA: Tem origem na língua grega. Representação: ana = repetição e phéro = ação de suportar ou a ação de manter. A palavra phero é classificada como verbo em grego.
A repetição conforme a linguística textual
A repetição pode ser utilizada como um recurso de construção de textualidade. Observe no posicionamento do professor Marcuschi (1977) citado no Livro Introdução à Linguística Textual, da pesquisadora Ingedore Villaça Koch, as funções que destacadas:
“Mais do que uma simples característica da língua falada, a repetição é uma das estratégias de formulação textual mais presentes na oralidade. Por sua maleabilidade funcional, a repetição assume um variado conjunto de funções. Contribui para a organização discursiva e a monitoração da coerência textual; favorece a coesão e a geração de sequências mais compreensíveis; dá continuidade à organização tópica e auxilia nas atividades interativas. Disso tudo resulta uma textualidade menos densa e maior envolvimento interpessoal, o que torna a repetição essencial nos processos de textualização na língua falada.” (KOCH, p. 111, 112)
A linguística textual atribui à repetição um valor persuasivo também nos textos escritos, dentre suas principais funções, está o reforço da argumentação. Observe este exemplo em que a repetição da expressão “o modelo tradicional” reforça o argumento de que a educação está fadada ao fracasso:
O modelo tradicional de educação, historicamente repetido, não funciona mais. O grande problema está na ideia de transmissão de conhecimentos de maneira descontextualizada. Este modelo tradicional, que nega as relações afetivas entre professor e aluno, e centraliza o processo no docente, desvaloriza o conhecimento prévio dos alunos e os desrespeita em sua natureza criativa e humana. Enquanto o modelo tradicional prevalecer, a educação estará fadada à derrota e os jovens permanecerão neste lugar não criativo e sem ação sobre o mundo. (Leticia Gomes Montenegro)
Bibliografia:
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. – 37. ed. rev., ampl. e atual. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
CASTILHO, Ataliba T. de. Nova gramática do português brasileiro. – 1. Ed., 4ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2016
CITELLI, Adilson. Linguagem e Persuasão. 15. Ed., 4° reimpressão – São Paulo: Ática, 2002.
CUNHA, Celso e CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. – 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
GARCIA, Maria Cecília. Minimanual compacto de gramática da língua portuguesa: teoria e prática – 1. ed. – São Paulo: Rideel, 2000.
ILARI, Rodolfo. Introdução à Semântica – brincando com a gramática. 3. ed. – São Paulo: Contexto, 2002.