Intolerância racial

Por Letícia Rodrigues Ferreira Netto

Licenciatura Plena e Bacharelado em Ciências Sociais (Faculdade de Ciências e Letras UNESP, 2015)
Mestrado em Ciências Sociais (Faculdade de Ciências e Letras UNESP, 2017)

Categorias: Sociologia
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O termo intolerância é construído na legislação e nas discussões acadêmicas por oposição à tolerância. A intolerância racial não é o racismo ou o preconceito ou a discriminação. A intolerância racial é uma atitude de violência, física ou simbólica, baseada na negação do sujeito, de sua pessoa e de sua identidade, por este pertencer a um grupo étnico-racial determinado. Percebe-se, na história, que vários povos e grupos étnicos sofreram discriminação e intolerância. A intolerância racial é crime no Brasil e uma violação de Direitos Humanos.

A tolerância é uma atitude de respeito ao direito à diferença previsto na Legislação dos Direitos Humanos e na Constituição Federal. Por oposição, a intolerância seria não aceitar a diferença, porém isso pode ocorrer de várias maneiras. Assim, a discriminação ocorre no tratamento desigual entre as pessoas de diferentes grupos étnico-raciais e a intolerância como a atitude violenta contra pessoas por motivação étnico-racial.

Neste sentido, é importante pensar a definição de raça. Atualmente, a partir de pesquisas com os genes humanos sabe-se que não é possível definir raças humanas a partir de características genéticas.

Os geneticistas descobriram que a constituição genética de todos os indivíduos é semelhante o suficiente para que a pequena porcentagem de genes que se distinguem (que inclui a aparência física, a cor da pele etc) não justifique a classificação da sociedade em raças. Essa pequena quantidade de genes diferentes está geralmente ligados à adaptação do indivíduo aos diferentes meio ambientes. (SPINELLI, 2013).

No entanto, a construção relativa às ideias de raça são feitas ao longo da história humana. E o preconceito associado a esta ideia, o racismo, surge antes deste conhecimento biológico. E deriva da discriminação construída socialmente a partir das ideias de superioridade entre povos e etnias. A etnia é diferente da ideia de raça, pois leva em consideração também todos os caracteres culturais e sociais de um determinado grupo social. Apesar de a raça não existir, o racismo é uma atitude de preconceito real e combatida por lei.

[...]qualquer doutrina de superioridade racial é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa e deve ser rejeitada, assim como teorias que tentam determinar a existência de raças humanas segregadas. (NAÇÕES UNIDAS).

A “raça” não é uma condição biológica como a etnia, mas uma condição social, psicossocial e cultural, criada, reiterada e desenvolvida na trama das relações sociais, envolvendo jogos de forças sociais e progressos de dominação e apropriação. (IANNI, 2004, p.23)

A intolerância racial se baseia nas construções ideológicas do racismo para justificar suas ações de violência. A busca de uma teoria das raças em que algumas raças humanas seriam mais desenvolvidas que outras legitimaria que as ações de violência, subordinação, objetificação, exclusão etc. A intolerância racial não aceita a existência da diversidade humana e pensa de forma generalizante o preconceito. A intolerância acomete todas as pessoas que pertençam ao grupo definido como “raça”.

Toma cada “civilização” como se fosse “essências”, qualificáveis ou inqualificáveis, com referência ao padrão de civilização capitalista desenvolvida na Europa Ocidental e nos Estados Unidos da América do Norte. [...] em nome da “civilização ocidental”, colonizando, combatendo ou mutilando outras “civilizações”, outros povos ou etnias. [...] desde o início dos tempos modernos, como exigências da “missão civilizatória” do Ocidente, como “fardo do homem branco”, como técnicas de expansão do capitalismo, visto como modo de produção e processo civilizatório. (IANNI, 2004, pp.22-23).

Um segredo da constituição da “raça”, como categoria social, está na acentuação de algum signo, traço. Característica ou marca fenotípica por parte de uns e de outros, na trama das relações sociais. Simultaneamente, na medida em que o indivíduo em causa, podendo ser negro, índio, árabe, judeu, chinês, japonês, hindu, angolano, paraguaio ou porto-riquenho, está em relação com outros, aos poucos é identificado, classificado, hierarquizado, priorizado ou subalternizado. (IANNI, 2004, p.23).

A ação de escolher uma marca para um grupo e discriminá-lo por apresentar esta marca é chamada de estigmatização. Para autores como Homi Baba, a estigmatização pode ser um processo de colonização. Os grupos sociais são divididos entre os iguais e a negação do igual, que é o outro. O outro é estigmatizado e constantemente definido. Os iguais são definidos como a negação do outro, ou seja, o comum e o que já é conhecido.

Conforme sugerem Adorno, Sartre e outros, o intolerante, preconceituoso ou racista, inventa o objeto de sua intolerância, ódio, agressão, podendo ser negro, árabe, judeu; por diferente, surpreendente. (IANNI, 2004, p.24)

A psicanálise lembra que as mais estranhas manifestações de intolerância são reservadas às pessoas “estranhas” que tentam agir e falar como aqueles que se julgam “cidadãos natos” e “autênticos”. Quanto mais estes “estranhos” tentam emular e imitar, isto é, quanto mais eles tentam “pertencer”, mais feroz aparece a rejeição. [...]Partindo da sua teoria do narcisismo, Freud abordou os mecanismos de intolerância, segregação e violência existentes na cultura para explicar como humanos vivendo em sociedades teriam propensão à agressão uns contra os outros. Haveria um processo no sentido de estigmatizar o outro com pequenas diferenças que construiriam o estranhamento desse outro e a segregação nos grupos. (FANTINI, 2014).

Fantini coloca como a intolerância se dá enquanto supressão de direitos em sociedade. A pessoa que exerce a intolerância racial acredita que as pessoas vítimas deste processo não tem o direito de serem iguais, terem as mesmas atitudes, falas, posturas, acessos que os demais cidadãos. A busca por acentuar a diferença entre as pessoas leva à estigmatização de grupos sociais. Para Homi Baba, essa estigmatização é passada entre as gerações e os preconceitos se tornam hereditários até serem combatidos com diferentes atitudes, como a educação, legislação etc.

Em 1968, o Brasil assinou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, hoje ratificada por 170 Estados. O documento define a discriminação racial como toda a distinção ou exclusão baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha por resultado anular ou restringir o livre e pleno exercício dos direitos humanos. (JORNAL DA USP, 2016).

A legislação brasileira que estabelece regras contra a discriminação e a intolerância racial se refere ao Artigo 5º da Constituição Federal, à Lei nº 1.390/1951, Lei nº 7.716/1989 e Lei 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial). A intolerância racial é uma violação dos Direitos Humanos por ferir o direito de igualdade. A ONU considera o dia 21 de Março como o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial.

No Brasil, podemos dizer que as ações afirmativas caminham hoje em sentido diferente, especialmente se pensarmos no projeto político desenvolvido durante a ditadura militar dos anos 1970, onde havia um massivo esforço de propaganda para unir a nação “como um só povo”, um projeto político nacionalista que defendia uma confrontação à “ameaça vermelha” do comunismo como uma ameaça representada pelo outro. Nesse sentido, as políticas de igualdade, depois dos anos 2000, têm agora outra direção. No entanto, o resgate histórico das desigualdades do passado com particular relevo para o legado da escravidão e o extermínio das nações indígenas, ainda não foi feito com a devida elaboração (ducharbeiten) histórica. Passamos, assim, de um regime de alta densidade em termos de políticas de identidade nacional, como parte de uma política de Estado marcada pela intolerância, para um estado de abertura do país, caracterizado pela grande internacionalização econômica e intensa mobilidade social. (FANTINI, 2014)

A intolerância racial se baseia na não aceitação da diferença e a tentativa de supressão do diferente, enquanto os discursos de afirmação de direitos se baseiam na convivência e harmonia das diferenças enquanto características humanas. Assim, a intolerância racial é uma manifestação violenta de preconceitos contra pessoas baseadas nas diferenças étnico-raciais.

Referências:

BRASIL. LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm

BRASIL. LEI Nº 12.288, DE 20 DE JULHO DE 2010. http://planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm

SPINELLI, Kelly C. Raças humanas não existem como entidades biológicas, diz geneticista. Jornal UOL, São Paulo, 05/02/2013. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2013/02/05/racas-humanas-nao-existem-como-entidades-biologicas-diz-geneticista.htm

FANTINI, João Angelo. Aquarela da intolerância: racialização e políticas de igualdade no Brasil. Leitura Flutuante. Revista do Centro de Estudos em Semiótica e Psicanálise. ISSN 2175-7291, [S.l.], v. 4, n. 1, set. 2012. ISSN 2175-7291. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/leituraflutuante/article/view/11130/8161>. Acesso em: 12 jul. 2019

IANNI, Octavio. Octavio Ianni: o preconceito racial no Brasil. Estud. av.,  São Paulo ,  v. 18, n. 50, p. 6-20,  Apr.  2004 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100002&lng=en&nrm=iso>. access on  12  July  2019.  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000100002.

Bhaba, Homi K. O local da cultura. Belo Horiznte, UFMG, 1998 2003.

JORNAL DA USP. Racismo e suas formas de existência na sociedade brasileira. São Paulo. 22/07/2016. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/racismo-e-suas-formas-de-existencia-na-sociedade-brasileira/

NAÇÕES UNIDAS. ONU e a luta contra a discriminação racial. Disponível em: https://nacoesunidas.org/acao/discriminacao-racial/

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