As milícias são organizações armadas que constituem um poder paralelo, isto é, exercem atividades não-autorizadas de repressão e aplicação da força. Ainda que a utilização de forças milicianas tenham longa raiz histórica, existindo na Roma Antiga e estando presente no medievo europeu, por exemplo, hoje, sua presença e atuação tornaram-se um dos temas centrais na discussão sobre a criminalidade no Brasil, caracterizando modos de atuação específicos e dominando diferentes áreas de influência.
O início da atuação das milícias no país remonta à década de 70 no estado do Rio de Janeiro. Buscando se protegerem de bandidos e traficantes que atuavam em suas regiões, moradores e comerciantes dessas áreas contratavam o serviço de proteção de membros das mais diversas carreiras das áreas de defesa, como policiais, bombeiros, agentes penitenciários e demais militares, que podiam ou não ser membros ativos dessas corporações. Desse modo, em decorrência da fragilidade e da ineficiência do Estado em prover segurança para a população, os mesmos agentes do Estado, agora na posição privada de milicianos, ofertavam esse serviço de segurança de forma ilegal. Não tardou para que esses grupos escalassem na violência de suas práticas, transformando-se em grupos de extermínio.
Dessa forma, aquilo que começara como uma maneira alternativa de fornecer proteção para as comunidades (sobretudo contra os traficantes de drogas que já dominavam algumas regiões da cidade) rapidamente tornou-se mais uma organização criminosa como as outras que já existiam. Assim, além de suas formas já conhecidas de financiamento por meio da extorsão dos moradores e comerciantes e da venda ilegal de gás e de televisão a cabo, das receitas com os jogos de azar e o empréstimo de dinheiro a juros abusivos (agiotagem), as milícias passaram a atuar também no comércio de drogas. Se no início as milícias poderiam até parecer um mal menor frente àquele despertado pelos traficantes de drogas, com a ampliação de sua atuação, a distinção perdeu o sentido e ambos os grupos hoje são violentas facções criminosas que disputam o domínio sobre as atividades ilegais na cidade do Rio de Janeiro.
A ascensão das milícias pode ser creditada, então, a dois fatores: primeiramente, amparada nessa narrativa de que estariam enfrentando o perigo maior oferecido pelo comércio de drogas, as milícias receberam apoio da população, e, com isso, logo se propagaram para o sistema político oficial, tendo apoio de líderes políticos locais ou elegendo seus próprios líderes para os cargos oficiais. São comuns na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e na Assembleia Legislativa do Estado os casos de emprego de milicianos e pessoas ligadas a milícias nas funções de assessoria parlamentar de gabinetes de vereadores e deputados. Além disso, uma outra razão para o crescimento reside no fato que, como a maioria dos milicianos eram membros das forças públicas de segurança, o enfrentamento aos traficantes por parte do poder público continuou forte enquanto era feita vista grossa às atividades das milícias, deixando-os livres para ocuparem esses espaços. A sequência dos filmes Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 (2010) retratam bem essa transformação do crime: enquanto o primeiro enfoca a atuação da polícia contra os traficantes de drogas, a continuação mostra as facções milicianas tomando o lugar do tráfico e o profundo enraizamento da milícia com a classe política municipal, estadual e federal.
Fontes:
MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Editora Todavia, 2020.
Texto originalmente publicado em https://www.infoescola.com/sociologia/milicias/