Racismo internalizado é um termo utilizado para definir as práticas racistas dentro dos próprios grupos que sofrem discriminação. O racismo internalizado não é o mesmo que o racismo per se entre grupos hegemônicos e adversários, em que se pode perceber relações de poder e subjugamento; é mais uma consequência deste, pois se refere à internalização das ideologias e estereótipos negativos perpetrados por grupos hegemônicos. Pode-se perceber este fenômeno em diferentes grupos sociais e com diferentes etnias.
O racismo, de maneira geral, é a crença discriminatória que existem raças na humanidade, ou seja, diferenças biológicas essenciais, e que estas diferenças influenciam tanto a biologia, como principalmente a moral, costumes, predisposições etc. Essas diferenças possibilitariam colocar as raças em uma escala estipulando uma raça melhor que as demais. O que se percebe é que todos os povos em algum momento tem atitudes assim, porém no século XIX, a biologia é utilizada como argumentação para as diferenças entre as raças humanas e, estudos enviesados endossavam a superioridade branca sobre as demais “raças”. Atualmente, sabe-se que não há caracteres genéticos suficientes para definir raças na espécie humana, apesar das diferenças fenotípicas. A maior parte das diferenças humanas reside nos elementos socioculturais e não na biologia da espécie.
Na moderna historiografia, do século XVI ao XIX, o mito da raça aparece quase como uma busca do princípio, como nostalgia de uma origem pura, incontaminada e distante, cuja herança seria mister guardar com fidelidade, como vontade de remontar ao momento auroral, onde melhor se delineiam as verdadeiras características (políticas) de uma nação. [...] [Contemporaneamente, Este irracionalismo místico, baseado na carne, no sangue, na hereditariedade biológica, na terra (Blut und Boden), é um irracionalismo que se opõe à cultura, ao racionalismo e ao humanismo liberal. (BOBBIO, 2016, pp. 1060-1)
Já o racismo internalizado se refere a um conjunto de práticas sociais de reprodução do racismo estrutural de uma sociedade. Em geral, fala-se de uma supremacia branca devido a todos os processos de colonização e imperialismo que ocorreram na Idade Moderna e Contemporânea, mas não é necessariamente atrelado à pele branca esse processo de racismo internalizado. Essas práticas se referem a adoção de estereótipos negativos sobre a própria etnia que acaba por perpetuar as estruturas do racismo, seja em termos relacionados a etnia especificamente ou não.
I rely on a Gramscian (1971) conceptualization of hegemony to understand the process by which the ruling race attains consensus of subordinated groups. The dominant group controls the construction of reality through the production of ideologies or “knowledge” (Foucault 1977 [1975]) that circulate throughout society where they inform social norms, organizational practices, bureaucratic procedures, and commonsense knowledge. In this way the interests of the oppressors are presented as reflecting everyone’s best interests, thereby getting oppressed groups to accept the dominant group’s interests as their own and minimize conflict [...] (PYKE, 2010, p.556)
Fio-me em uma conceitualização da hegemonia gramsciana (1971) para entender o processo pelo qual a raça dominante alcança consenso de grupos subordinados. O grupo dominante controla a construção da realidade através da produção de ideologias ou “conhecimento” (Foucault 1977 [1975]) que circulam por toda a sociedade onde informam normas sociais, práticas organizacionais, procedimentos burocráticos, e conhecimento do senso comum. Dessa maneira, os interesses dos opressores são apresentados como refletindo os melhores interesses de todos, fazendo com que os grupos oprimidos aceitem os interesses do grupo dominante como seus e minimizem os conflitos. [Em tradução livre]
O racismo internalizado, segundo Pike (2010), é um fenômeno multidimensional que não pode ser resumido ou minimizado por uma abordagem apenas. A autora critica a abordagem psicológica do racismo internalizado já que esta propõe o tratamento individual e não trabalha a perspectiva estrutural desta temática.
This literature focuses on the psychological responses of the oppressed and how the subordinated can enhance their feelings of self-esteem, such as through consciousness-raising efforts (Lipsky 1987). Placing responsibility on the oppressed to solve the problem suggests it is of their own making, which easily leads to blaming the victims for internalized racism. (PIKE, 2010, p. 554).
[Esta literatura enfoca as respostas psicológicas dos oprimidos e como os subordinados podem aumentar seus sentimentos de auto-estima, como por meio de esforços de conscientização (Lipsky, 1987). Colocar a responsabilidade sobre os oprimidos para resolver o problema sugere que este é de sua própria criação, que leva facilmente a culpar as vítimas por racismo internalizado. (Em tradução livre)]
As práticas que enfatizam a psicologia, ou seja, a interpretação pela abordagem individual podem, assim, também contribuir para a permanência do racismo internalizado. Pode-se perceber os processos de racismo internalizado em diferentes situações. São exemplos a questão da beleza branca ser valorizada, os cabelos e os procedimentos estéticos, assim como o impacto que isto pode gerar na autoestima das pessoas pertencentes a grupos subordinados. Porém, não necessariamente o racismo internalizado se apresenta em casos específicos relacionados a fatores étnico-raciais.
The concept of hegemony also encourages attention to how White racism can be indirectly internalized via cultural myths and ideologies that seemingly have nothing to do with race per se. An example of such an ideology is meritocracy, the notion that the selection of individuals for advancement and opportunities is based on their achievements and skills. Meritocracy obscures oppression by suggesting that racial disparities in hiring or school admissions are decided according to “objective” standards applied equally to all. (PIKE, 2010, p. 556)
O conceito de hegemonia também incentiva a atenção de como o racismo branco pode ser indiretamente internalizado através de mitos e ideologias culturais que aparentemente não têm nada a ver com a raça em si. Um exemplo dessa ideologia é a meritocracia, a noção de que a seleção de indivíduos para promoção e oportunidades se baseia em suas realizações e habilidades. A meritocracia obscurece a opressão, sugerindo que as disparidades raciais nas contratações ou admissões nas escolas sejam decididas de acordo com padrões "objetivos" aplicados igualmente a todos. [Em tradução livre]
Outro exemplo abordado por Pike é a possibilidade de grupos sociais acreditarem que os processos de discriminação racial serão minimizados ao incorporarem os comportamentos de grupos dominantes e ao se juntarem a grupos dominantes na sociedade. Para a autora, esse pensamento é falacioso no momento em que tais grupos são bastante restritos, mas principalmente são estes os grupos que produzem as ideologias de superioridade e inferioridade raciais. Os grupos subjugados teriam tal atitude para diminuir seu alheamento e diminuir suas diferenças e, isto, seria encorajado no discurso dos grupos dominantes, mas não é efetivado socialmente.
Assim, percebe-se que o racismo internalizado é uma prática que deriva das estruturas de discriminação entre grupos étnico-raciais. Ele é um processo realizado enquanto uma negação da própria etnia em determinados aspectos e é um fenômeno multidimensional. Está intimamente relacionado as práticas estruturais e sociais do racismo, e impacta a construção da identidade individual dos grupos subalternos. As práticas de racismo internalizado se referem a opressões internalizadas e que são também reproduzidas pelos grupos que sofrem com essa discriminação a partir de atitudes do senso comum. Como exemplos, percebe-se a construção da identidade do indivíduo em constante comparação com a dos grupos dominantes; desvalorização da beleza étnica; tentativa de se aproximar e se assemelhar dos grupos hegemônicos ao utilizar os mesmos discursos e práticas discriminatórias com outros membros do grupo subjugado.
Referências:
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Brasília, 2016.
PYKE, Karen D. What is internalized racial oppression and why don't we study it? Acknowledging racism's hidden injuries. Sociological Perspectives, v. 53, n. 4, p. 551-572, 2010.
SPINELLI, Kelly C. Raças humanas não existem como entidades biológicas, diz geneticista. Jornal UOL, São Paulo, 05/02/2013. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2013/02/05/racas-humanas-nao-existem-como-entidades-biologicas-diz-geneticista.htm